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Dia Mundial da Paz

31-12-2013 22:33

Dia Mundial da Paz

O primeiro dia de janeiro marca a entrada do novo ano civil. E falar de ano civil já não seria pouco, se pensarmos na importância de que se devem revestir as relações entre os cidadãos e entre estes e os poderes, quer se trate de poderes políticos quer se trate de outros podres como o económico, o financeiro, o profissional, o escolar, o empresarial ou o laboral. E porque não se apelidarem também estes de poder político, já que planeiam, regulam, controlam e potenciam as relações que os homens e mulheres desenvolvem entre si em torno do bem-estar de cada um e do chamado bem comum?

Mas o primeiro dia do ano foi escolhido pelos corifeus do iluminismo para promover e festejar a fraternidade universal e a ONU - Organização das Nações Unidas designou-o como o dia da confraternização universal. Para todos os povos, o início de novo é assumido como tempo de recomeçar, reconstruir, repensar, refazer, restabelecer, etc. A chegada de um ano desperta sempre a justa expectativa da abertura de um novo ciclo, cheio de transformações que se querem positivas e desafiantes. Simpatias, presenças, gestos simbólicos e tradições reforçam ainda mais este dinamismo em torno da festa: o réveillon, comer as passas, rebentar a garrafa de champanhe ou bebida igualmente esfusiante, e brindar ao recomeço é à boa sorte!

 Na sequência do concílio Vaticano II, de forte repensar da doutrina da Igreja e da sua posição perante o mundo, Paulo VI – é bom não o esquecer pela inauguração de gestos de grande profetismo – entendeu promover um mecanismo de oração pela paz interna da Igreja e pelo restabelecimento, reforço e consolidação da paz no mundo inteiro. Na sua homilia a 13 de maio de 1967, em Fátima, afirmava:

“A primeira intenção é a Igreja: a Igreja una, santa, católica e apostólica. Queremos rezar, como dissemos, pela sua paz interior. (…) E, assim, passamos à segunda intenção deste Nosso peregrinar, intenção que enche a Nossa alma: o mundo, a paz do mundo. (…) … verificais que o mundo ,não é feliz nem está tranquilo. A primeira causa desta sua inquietação é a dificuldade que encontra em estabelecer a concórdia, em conseguir a paz. Tudo parece impelir o mundo para a fraternidade, para a unidade; no entanto, no seio da humanidade, descobrimos ainda tremendos e contínuos conflitos.”.

E, assim, a liturgia coloca a inauguração do novo ano sob a égide de Santa Maria Mãe de Deus (DS 251), o primeiro título consolidado atribuído à mãe de Jesus na História da Igreja, sobretudo depois do Concílio de Éfeso (ano de 431). Todos os textos litúrgicos do dia respiram paz, bênção e felicidade. Será por ela ser a mãe do Príncipe da Paz, referido por Isaías, ou a Rainha da Paz, invocada na ladainha lauretana?

E, em 8 de dezembro de 1967, dia da Imaculada Conceição, o mesmo pontífice, através de mensagem adequada, decidiu-se pela instituição do dia primeiro do ano como Dia Mundial da Paz, ocorrendo o primeiro em 1 de janeiro de 1968, e suscitando a “adesão de todos os verdadeiros amigos da Paz, como se se tratasse de uma iniciativa sua própria; que ela se exprimisse livremente, por todos aqueles modos que mais estivessem a carácter e mais de acordo com a índole particular de quantos avaliam bem, como é bela e importante ao mesmo tempo, a consonância de todas as vozes do mundo, consonância na harmonia, feita da variedade da humanidade moderna, no exaltar deste bem primário que é a Paz”.

Os sucessores do papa Montini não deixaram interromper esta cadeia anual de dias mundiais da paz e, como aquele, para cada comemoração desta bela efeméride indicaram temas que desenvolviam aspetos fortemente atinentes àquele tema nuclear. Assim é que se afirma que o nome da paz é desenvolvimento, que ela depende de cada um, que resulta do esforço de cada dia ou que o mundo carece de educação para ela e assim por diante.

Portanto, o Dia da Paz Mundial é um dia a ser celebrado pelos "verdadeiros amigos da Paz", independente do credo, etnia, posição social ou económica, que cada um assuma. Ainda que desde 1981 o Dia Internacional da Paz (uma ligeira alteração de denominação) seja comemorado em 21 de setembro, a data de 1 de janeiro é reconhecida, sem desmerecer da iniciativa de Paulo VI e sucessores, pela ONU como o Dia da Confraternização Universal, ou seja, do diálogo e da paz entre os povos – temas bem do coração de Montini.

E que nos diz de novo o papa Francisco aos costumes? Leiamos um pouquito:

… no coração de cada homem e mulher, habita o anseio duma vida plena que contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar”.

E, sendo a fraternidade uma dimensão essencial do homem, por ser ele um ser relacional, “a consciência viva desta dimensão relacional leva-nos a ver e tratar cada pessoa como uma verdadeira irmã e um verdadeiro irmão” e, por consequência, à “construção duma sociedade justa, duma paz firme e duradoura”. Ao assumir as diferenças de género e ao reconhecer que “a fraternidade se começa a aprender habitualmente no seio da família, graças sobretudo às funções responsáveis e complementares de todos os seus membros”, Francisco vai ao ponto de fazer a afirmação epistemológica e pedagógica de que “a família é a fonte de toda a fraternidade, sendo por isso mesmo também o fundamento e o caminho primário para a paz, já que, por vocação, deveria contagiar o mundo com o seu amor”.

É a confissão clara de que a fraternidade, componente essencial do homem, será o fundamento da paz e  seu fundamento reside na família, caminho primordial da paz.

No entanto, o papa adverte claramente que, se “o número sempre crescente de ligações e comunicações que envolvem o nosso planeta torna mais palpável a consciência da unidade e partilha dum destino”, nem por isso, deixa de ser grave que esta vocação seja “muitas vezes contrastada e negada nos factos, num mundo caraterizado pela 'globalização da indiferença' que lentamente nos faz 'habituar' ao sofrimento alheio, fechando-nos em nós mesmos”. E denuncia, com o vigor de seu estilo e sua voz, que “em muitas partes do mundo, parece não conhecer tréguas a grave lesão dos direitos humanos fundamentais, sobretudo dos direitos à vida e à liberdade de religião”, sendo disso exemplo preocupante “o dramático fenómeno do tráfico de seres humanos, sobre cuja vida e desespero especulam pessoas sem escrúpulos”. E ainda: “Às guerras feitas de confrontos armados juntam-se guerras menos visíveis, mas não menos cruéis, que se combatem nos campos económico e financeiro com meios igualmente demolidores de vidas, de famílias, de empresas”.

Serão estes os principais obstáculos à fraternidade e à paz explicáveis pela razão de a globalização, que nos torna vizinhos, não nos fazer irmãos, como já dizia Bento XVI. Por outro lado, as “novas ideologias, caraterizadas por generalizado individualismo, egocentrismo e consumismo materialista, debilitam os laços sociais, alimentando aquela mentalidade do 'descartável' que induz ao desprezo e abandono dos mais fracos, daqueles que são considerados ‘inúteis’", fazendo com que a convivência humana se assemelhe “sempre mais a um mero do ut des pragmático e egoísta”. Enfim, “resulta claramente que as próprias éticas contemporâneas se mostram incapazes de produzir autênticos vínculos de fraternidade, porque uma fraternidade privada da referência a um Pai comum como seu fundamento último não consegue subsistir”, uma vez que uma “verdadeira fraternidade entre os homens supõe e exige uma paternidade transcendente” cujo reconhecimento levará à consolidação da “fraternidade entre os homens, ou seja, aquele fazer-se 'próximo' para cuidar do outro".

É a ilação de que a fraternidade universal pressupõe e postula uma paternidade transcendente comum – Pater Noster qui es in caelis – que os homens teimam em não reconhecer.

Por isso, no dia da fraternidade universal ou no dia mundial da paz, os crentes que rezam à Senhora da Paz não podem deixar de olhar para e pelo próximo e invocar, em atitude de compromisso ético-antropológico, o inefável e transcendente Paterfamilias.

A liberdade de um autor religioso

30-12-2013 23:58

A liberdade de um autor religioso

Na edição on line do Diário de Notícias, de 30 de dezembro, questiona-se se um autor religioso pode ser realmente livre. Tal questionamento tem a ver com a afirmação do teólogo José Tolentino Mendonça, padre e poeta, consultor do Pontifício Conselho para a Cultura, que, a propósito da publicação, nas últimas semanas, de seus “três livros, da poesia à prosa, passando pelo ensaio, e onde Jesus e Papa Francisco convivem com Jack Kerouac e Bruce Springsteen”, afirmara que escrevia com muita liberdade.

Não percebendo muito bem por que motivo se lança a questão somente sobre a liberdade de um autor religioso e não de outros também, propus-me a reflexão sobre a ideia de liberdade. Paulo de Tarso clama que nós fomos chamados à liberdade e Jean Paul Sarte assegurava que o homem era um projeto e estava condenado à liberdade. A isto hei por bem afirmar que gosto da chamada à liberdade e rejeito a liberdade como marca de condenação.

Se liberdade é a capacidade de optar pelo bem, na sequência da operação de discernimento para que o homem é permanentemente convocado, todo o homem goza de uma liberdade interior de que nada nem ninguém o pode expropriar. “Não há machado que corte a raiz ao pensamento” – Não rezava assim a canção? Já não refiro, agora que o tempo de escravatura acabou na teoria, o contexto paulino de liberdade em contraposição com o estatuto de escravo que alguns homens, de que era exemplo Onésimo que Paulo considerava um filho gerado na prisão para a causa do evangelho, bem como o facto enunciado pelo apóstolo de que nós, incorporados em Cristo, somos livres, enquanto descendentes de Abrão pela condição de nascimento da mulher livre e não da escrava.

É certo que o conceito de liberdade tem muitas aceções – desde a capacidade de escolher e de não escolher, de escolher o bem ou de escolher o mal, de optar entre várias hipóteses – mas o contexto da escrita remete-nos para um determinado sentido da liberdade: a liberdade de opinião e expressão, por força da liberdade de investigação e discurso, em consequência da liberdade de consciência: “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (GS 16).

Não está em causa a liberdade legal de fazer tudo o que a lei não proíba e de não fazer nada daquilo a que ela não obrigue. Não está também em jogo a capacidade de voto num programa de governação, num esquema de atuação ou na opção por um ângulo de matéria atinente aos costumes. Está na mesa simplesmente a capacidade de expor, sem qualquer tipo de vigilância ou censura, as ideias, os sentimentos ou a doutrina.

Então, em matéria literária, artística, política ou científica, o escritor religioso é tão livre como qualquer outro. Em matéria de doutrina religiosa também o é, desde que exponha na sequência da investigação e estudo ou mesmo da simples reflexão. Só que não pode arvorar-se no direito de dizer que representa a Igreja ou a agremiação religiosa a que pertence, se acaso não escreve em consonância com ela.  

De resto, não pode, como os outros, cair na veleidade de que não erra ou que tem a última palavra nas matérias que versa e, sobretudo, tem de professar a humildade ovidiana “vejo o melhor e aprovo-o, mas sigo o pior” (video meliora proboque ac deteriora sequor – Metamorfoses VII,20) ou o reconhecimento paulino da condição humana “Não faço o bem que desejo, mas pratico o mal que não quero” (Non enim quod volo bonum hoc facio, sed non quod nolo malum hoc ago – Rm 7,19-20). Deve, ao invés, ultrapassar as malhas do instinto e renunciar aos caprichos das paixões menos benéficas e, por outro lado, resistir a toda a tentativa de coação que pretenda que ele desista de seus intentos, faça isto ou aquilo ou o faça desta ou daquela maneira.

Tal é a condição da vida humana: a dialética bem / mal; a articulação liberdade / responsabilidade; o dilema capacidade / limitação.

O que se deve por justiça…

30-12-2013 19:58

 

 

Quando ouço ou leio o aforismo, com o qual evidentemente que concordo, “não se dê por caridade aquilo que é devido por justiça”, fico seriamente a interrogar-me se o conceito de justiça presente é o mais adequado ou se a noção de caridade subjacente é mesmo evangélica. A razão de ser de tal interrogação apoia-se na vigorosa enunciação paulina do “ainda que reparta por inteiro os meus haveres e entregue o um corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita” (1Cor 13,3). Por outro lado, a profecia de Isaías assegura que “um rei reinará segundo a justiça e os príncipes governarão segundo o direito” (Is 32,1) e, aqui há uns dias, José Adelino Maltez esclarece Mário Crespo de que acima dos governantes está a lei, acima da lei, o direito e acima do direito, a justiça.

Sendo assim, o tema merece alguma reflexão, sem que se consiga colocar definitivamente as ideias na melhor arrumação. No entanto, é de repelir a atitude daqueles que vão “brincar à caridadezinha”, como é propósito irónico dos autores e executantes da conhecida canção ou a daquela poderosa, beata e rica senhora que rogava a Deus que lhe desse sempre pobres para que ela tivesse sempre a oportunidade de praticar generosamente a caridade e, no fim de seus dias, pudesse adormecer na paz da luz perpétua, interpretando à letra o dito do Cristo “pobres sempre os tereis” (Jo 12,8).

Precisando conceitos, há que recordar que a Igreja Católica tem elencado, tanto a nível tradicional como hodierno, a virtude da justiça (CIC 1805.1807) no tetracórdio das virtudes cardeais (em torno das quais giram todas as boas ações humanas), ao passo que a caridade é a maior das três virtudes teologais (cf 1 Cor 13,13), as quais aferem da boa relação do homem com o seu Deus e gizam a espiritualidade das atitudes para com o próximo.

Então, teremos de acertar em que a justiça, embora o pressuponha e o postule, não pode reduzir-se ao mero reconhecimento do direito que cada um tem a usufruir daquilo que é seu, ou porque já o possuía – ou porque o adquiriu por processos justos como a compra, a sucessão, o trabalho, etc. – ou porque teve de lhe ser restituído em virtude de roubo, empréstimo ou desvio involuntário. Esta será a índole comutativa da justiça, necessária, mas pobre. Seria caso para perguntar qual a sorte das crianças e dos pobres (que nada têm ou deixaram de ter), dos doentes ou inválidos e dos idosos, que já não podem nada mais adquirir pela força do trabalho. Será aqui que entra à vista a obrigatoriedade da marca distributiva da justiça a garantir, em termos equitativos, a cada um o mínimo para poder viver com aquela dignidade que permita que se ande no mundo sem receio de encarar os outros, embora não olvide a vantagem de premiar o mérito de quem mais trabalha ou mais contribui para o bem comum da sociedade. E isto consegue-se, em tempo de calamidade, com o contributo voluntário em massa dos que mais tenham, sobretudo enquanto os poderes instituídos não conseguem, em razão do peso da burocracia, acorrer às situações a que estão obrigados pela força do poder encarado como serviço. No entanto, os poderes políticos, se o são de verdade, têm de sentir a obrigação de, através de medidas de índole teleológica e reguladora, levar a melhor distribuição da riqueza, com a promoção de emprego, da ministração de bens indispensáveis – como a educação, a saúde, a segurança social – e o reforço das acorrência às situações de emergência. Para este exercício da justiça social, os poderes têm ao seu dispor o mecanismo dos impostos, a taxação de serviços prestados, a vigilância das instituições financeiras, a motivação dos agentes económicos, a otimização da gestão dos recursos e a solidariedade do concerto das nações com base na mutualidade. Para tanto, têm os poderes a necessidade de renunciar à escavação da austeridade sobre a austeridade, à promoção de equipamentos de natureza faraónica e à pregação da inevitabilidade.

E a que propósito vem a caridade? De certeza que não é por caridade ou por filantropia que se acorre ao próximo em situações de pobreza, emergência ou calamidade. Aí, sim, é caso para exigir que não se dê alegadamente por caridade aquilo que é devido por justiça. O primeiro postulado da caridade é a plena satisfação da justiça. Caridade é aquela benevolência que galvaniza o crente, divinamente inspirado, e o leva a praticar todas aquelas ações de justiça (podendo dispor não só do que lhe sobra, mas até de algo que lhe possa fazer falta) com o sentido da solidariedade e alegria, como se de ações praticadas por Cristo se tratasse, afastando de si qualquer tentação de despachar o pobre ou de querer que ele permaneça pobre e dependente.

Quero afirmar, ainda, que o não crente pode na prática revelar-se mais generoso até do que o crente. Nesse caso, sê-lo-á por filantropia ou benemerência (falta-lhe somente a dimensão teológica da caridade, uma vez que não se reconhece nesse campo).

Todavia, não se pode ser complacente com determinadas práticas, tais como: o embargo, por parte dos poderes ou intermediários, da chegada de frutos de campanhas humanitárias ao seu destino; o aproveitamento lucrativo das recolhas humanitárias de bens e serviços por parte de empresas, cadeias de distribuição e autoridades tributárias; o encerramento de empresas, com a subsequente extinção de postos de trabalho, e a abertura de outras pelos mesmos subscritores ou familiares; as falsas declarações de rendimentos e os consequentes aproveitamentos indevidos de candidaturas a ação social escolar, bolsas de estudo e isenção de impostos e taxas; a perceção de salários ou pensões obscenamente chorudos; e o avanço daquela economia globalizada, que mata, sem ética e sem lei.

E, sobretudo, não podem os cidadãos nem os Estados furtar ao próprio Estado, aos pobres, aos trabalhadores, às empresas, às igrejas, a outras coletividades para generosamente redistribuir à sua maneira.

Há muitos modos de fazer justiça (e caridade) pelas próprias mãos e ficar bem na fotografia!

O Papa pela pena de Pilar del Río

27-12-2013 18:41

 

María del Pilar del Río Sánchez, nascida em Castril, província de Granada, em 1950, é jornalista, escritora e tradutora espanhola.

Em 1986, conhece o escritor português José Saramago, após ter lido todos os seus livros publicados em espanhol e ter pedido para o conhecer pessoalmente. Dois anos mais tarde, casam e decidem viver em Lisboa, mudando-se posteriormente, a partir de 1993, para a ilha espanhola de Lanzarote, nas Canárias. Permaneceu ao seu lado até à sua morte, em 2010. Foi também a tradutora de vários romances de Saramago para espanhol, dizendo alguém que foi através dela que se processara a nomeação do escritor para Nobel da Literatura, com a consequente obtenção do galardão. Após a morte do marido, requereu a nacionalidade portuguesa, que lhe foi concedida, e passou a ocupar a presidência da Fundação José Saramago.

Pelo que transparece da sua postura e atuação, parece ser uma mulher de grande fôlego interventivo e, nesse sentido, se pode ler uma peça jornalística de sua pena, publicada na Visão, de 26 de dezembro, sobre o perfil do papa Francisco. Começa por afirmar que, a seguir à renúncia de Bento XVI, facilitadora da “operação perfeita”, se impunha da parte do colégio cardinalício – a jornalista pensa que tal opção terá sido premeditada e propositadamente trabalhada, o que não creio ter fundamento sólido – a escolha de um pontífice que “soubesse sorrir”, tal como em 1978, na sequência da morte de Paulo VI, com a eleição de Albino Luciani, o papa que sorriu durante apenas 33 dias, ao passo que o jesuíta franciscano já leva bastantes mais dias de sorriso sério, segundo julgo.

Opinando que se trata de um homem austero e tímido, mas que, sem especiais dotes oratórios, se tornou estrela ao ser fortemente aplaudido no termo de uma homilia em Aparecida, no quadro do Sínodo da América Latina, a articulista entende que a singularidade e brilho deste homem não emanam da “púrpura do papado nem dos 20 séculos de história da Igreja Católica”, mas “de uma tentativa pessoal de ser útil às pessoas a partir dos códigos estabelecidos pelo Evangelho e pelo momento fundacional dessa instituição”. Creio ser de aceitar plenamente a segunda parte deste segmento opinativo, porém sem obnubilar quer a experiência anterior na Argentina, que a jornalista integra, e toda a tradição acumulada ao longo da história eclesial, que, se manchada por graves sombras e mesmo pecados, fruto do pó, caruncho e bicho acumulados na cátedra pós-constantiniana, também brilha como luminar das pessoas e dos povos, na procura nem sempre cabalmente conseguida na fidelidade ao redentor e na sintonia com os mais pobres e arredados para as mais ruinosas periferias.

Pilar del Río, apoiada no ponto de vistas e outros analistas, assegura que Francisco é um “tipo duro de roer”, “implacável como opositor”, rápido nas respostas, de inteligência acima do normal, sem tremer diante do poder e, sobretudo, “não é um homem acomodatício”, que possa ser seduzido com lisonjas ou com promessas paradisíacas. No entanto, pergunta-se o que pode Francisco fazer em termos de reforma da Igreja, para lá de afirmar doutrinariamente o que os predecessores confessaram, embora com outro estilo e outro enfoque.

Bastará, como dizem alguns, acertar as contas com a vigilância financeira, castigar os prevaricadores, renunciar a determinados adereços pontificais, que mais do que a simplicidade evangélica denunciam o sucedâneo do fausto imperial? Ser-lhe-á possível revolucionar a governação da igreja através da máxima descentralização possível, da audição do pulsar das bases e do arejamento das estruturas da cúria romana?

Para já, os passos ensaiados vão no bom caminho: se algum amadorismo se percebe nas cosias da governação, o certo é que este homem está a aproximar-se das pessoas, a relembrar os pobres, a denunciar a economia sem ética e que mata (cf Evangelii Gaudium), a questionar com todo o vigor “se há algo mais humilhante do que não poder ganhar o pão”, nas palavras de Pilar, e a querer que os pastores o sejam, mas “com o odor das ovelhas” (cf homilia da missa crismal). Enfim, oportuna e importunamente (cf 2Tim 4,2) usa da força insistente da palavra para assumir a função profética da denúncia da injustiça, do anúncio esperançoso do reino de Deus e no compromisso com a transformação do homem e do mundo segundo o coração de Deus.

Natal pro populo

23-12-2013 17:17

Natal pro populo

A primeira ideia que me surgiu ao tentar esta reflexão foi a de a intitular como natal popular, natal laico, ou natal católico, natal holístico ou natal universal. Porém, dei-me conta de que tais expressões, por si só, dadas as conotações que foram adquirido, se prestavam desnecessariamente a equívocos ora dispensáveis.

Natal popular é, entre nós, aquele que passa pelo povo e que o toca sem o atingir em profundidade perdido, que ele anda nas tarefas de venda / compra, na troca de presentes, nas viagens, nas manifestações folclóricas dos cantares e coreografias facilitadas pela luminotécnica e pela sonoplastia, pelos concertos de natal e, ainda bem, em tantos casos, pela maior atenção aos pobres, novos ou antigos. Mas o Natal, não podendo ser populista, é radicalmente popular como veremos, sobretudo, se iluminar, alimentar e consolidar o destino que o povo tem de ter em suas mãos, sem o alienar ou hipotecar. “Salus reipublicae (populi) lex suprma esto” – era o lema dos romanos.

Chamar-lhe laico pareceria chamar-lhe arreligioso, o que de todo não quero, antes pelo contrário, mas a modernidade induziria a esse entendimento ou a reduzir o Natal à mera esfera privada, perante a encomiástica indiferença de todos, sobretudo os estratos do Estado. E, se o Natal tem de abanar a fundo as consciências, não pode confinar-se às paredes bafientas das sacristias ou dos majestosos templos, tantos deles carregados de inefável museologia e a apontar pelo vazio de que se revestiram o caminho do inferno. Mas, se laico ou leigo é aquele que se sente membro do povo (laós, no grego), de facto e de pleno direito, então o Natal é visceralmente laico ou laical, porque o Natal é a festa do povo no melhor dos sentidos, mormente o da esperança operativa.

Dizer católico do Natal, que o é efetivamente, porque estendido a todo o mundo, poderia fazer crer, embora involuntariamente, que seria “presa” monopolizada dos católicos, sem que os crentes de outras religiões, mesmo das cristãs, ou os não crentes tivessem acesso à festa – o que seria totalmente antievangélico. Mas, como vimos, o Natal é e fortemente católico, pois, “Deus não faz aceção de pessoas, mas, em qualquer nação, aquele que O teme e pratica a justiça, é-Lhe agradável”, diz Pedro (Act 10, 34-35)! Não tendo os cristãos o direito de o imporem, também será desajustado que alguém lhe queira fechar a porta ou tenha a veleidade de inventar milhentas maneiras de tudo fazer para que o Natal seja passado de forma que não se pareça em nada com o Natal, numa perspetiva indiferentista ou mesmo antiteísta.

Entendê-lo como holístico seria colocá-lo artificiosamente em contraposição com outras realidades consideradas como partes (merónimos), correspondendo o Natal ao todo enquanto soma de várias parcelas. E a economia da salvação não pode considerar, Deus, o mundo ou o homem como parcela do que quer que seja, antes, individualidades em pleno. Mas o Natal é um todo a proclamar Urbi et Orbi  a paz e a liberdade que o Príncipe da Paz oferece a todos os de boa vontade. – “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz” (Jo14,27) – garante-nos o Cristo; “Cristo libertou-nos para que sejamos verdadeiramente livres (…) “Irmãos fostes chamados à liberdade” (Gl 5,1.13) – ensina Paulo.

E o Natal é universal? Sim, mesmo no sentido da filosofia escolástica enquanto se aplica a todos e a cada um. Porém, não basta que seja aplicável. Importa que se aplique e que seja plenamente abraçado, vivido e missionado por todos e por cada um, salgando as vidas das pessoas e dos povos com a força do Evangelho, fermentando-lhes as ações e iluminando-lhes os caminhos. O Natal é verdadeiramente universal!

Temos, várias vezes, acentuado o caráter do Natal como festa dignidade do homem, festa da condescendência divina, momento propício à reunião da família. Chegámos a sublinhar o Natal como ósculo de Deus ao homem que é necessário salvar ou o primeiro passo de Deus na Terra para a redenção da Humanidade a culminar na árvore da cruz. Porém, não podemos olvidar a dimensão popular do Natal, pois ele é a realização da profecia de Isaías: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz” (Is 9,2) e o desígnio revelado por Paulo na carta a Tito: “Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens” (Tito, 2,11).

Não é sem razão que Francisco, o novo apóstolo das Gentes, afirma com toda a clareza que “Natal é o encontro de Deus com seu povo” (…) “Para mim, o Natal sempre teve a ver com isso: contemplar a visita de Deus a seu povo” (Apud Andrea Tornielli).

Por isso, o Natal é popular, laical, católico, holístico e universal – porque é divino, pessoal, familiar, santo, apostólico e missionário. E daí as suas consequências terão de ser também as seguintes:

“Ergue os teus olhos, a luz surgiu. Hoje nasceu o nosso Deus.

  Dias de paz amanheceram. Hoje nasceu o nosso Deus.

1.     A terra foi dividida com justiça e cada mão recebeu o pão igual. Eis o sinal do nosso Deus.

2.     Hoje caíram as grades das prisões e não ouvimos o grito das torturas. Eis o sinal do nosso Deus.

3.     A voz do povo foi livre na cidade e cada homem o homem encontrou. Eis o sinal do nosso Deus.

      (Cf Ferreira dos Santos, in “Cantemos todos”)

 

 

Considerações a propósito do Natal

22-12-2013 01:56

Considerações a propósito do Natal.docx (18725)

Quando não há profissionalismo…

21-12-2013 19:55

Quando não há profissionalismo…

 

Quando não há profissionalismo, lentamente vai-se escorregando para o nível da mediocridade – declara o papa Francisco em discurso de hoje, dia 21 de dezembro aos membros da cúria romana.

Tal declaração acompanhada de outras conexas foi prestada perante todos os superiores e oficiais da cúria, a quem sentiu a necessidade de agradecer “ todos, como comunidade de trabalho, e a cada um pessoalmente” e em especial àqueles que “terminam o seu serviço e passam à reforma”.

Francisco salienta a vertente do serviço, sobretudo aquele que é pautado pela discrição. E indica os seus postulados: dedicação e trabalho com “competência, precisão, abnegação”, na realização cuidadosa do dever quotidiano. Para tanto, o profissional tem de possuir três caraterísticas: competência, estudo e atualização. Sem isso, o profissionalismo descamba, embora lentamente para a mediocridade, levando a que a resolução dos casos se reduza “a informações estereotipadas e comunicações sem fermento de vida, incapazes de gerar horizontes grandes”.

Todo este raciocínio é dirigido a trabalhadores, alguns dos quais com funções de decisão ou, ao menos de proposta, a quem recorda, como pressupostos ou pré-requisitos, que, naturalmente, o profissionalismo se vai “formando e, pelo menos em parte”, se adquire, “mas, precisamente para que se forme e seja adquirido”, pensa “que é preciso haver, desde o início, uma boa base”. E, enquanto enaltece os pré-requisitos do serviço profissional, seus postulados e caraterísticas, esconjura as murmurações, que “lesam a qualidade das pessoas, lesam a qualidade do trabalho e do ambiente”.

Penso que esta lição deveria ser acolhida nas empresas e nas escolas, por dirigentes e trabalhadores, nas sociedades e associações, nos gabinetes e nos lugares de atendimento, nos hospitais e nos centros de saúde, nas fábricas e nos estádios, nos ambientes sociais e nos espaços políticos. Quanta ineficácia e mal-estar se criam por causa da maledicência e intriguismo, subserviência e falta de profissionalismo, por arrogância ou por falta de coragem, por egoísmo ou por falta de atenção ao outro!

Penso que o Natal – para os crentes, festa da humildade e condescendência de Deus (em grego, “kénosis” e “sinkatábasis”) e de comunhão com o seu povo (koinonía) e, para todos, festa da família e do povo na sua genuinidade – deveria ser momento de repensarmos a forma de assumir as nossas responsabilidades no dia a dia e nos grandes momentos, de nos relacionarmos com a vida e com o mundo da consciência e da comunidade, da memória e da perspetivação do futuro.

Feliz Natal para todos!

***

Festa de Deus cujo apelido é o homem, como quer o Papa Francisco, ou encontro de Deus como o seu povo e hora da família, do aconchego da lareira, do frio da reflexão e do quente da amizade;

Sob a égide do Menino que chegou “fraco e indefeso”, mas “meigo e amigo de todos”, no meio da «normalidade» anormal em que, como refere o recém-nomeado bispo das Forças Armadas e Segurança, o império que “não tem bandeira, nem território, mas capital e capitais e “esmaga os salários para «recapitalizar» as empresas”, “especialista em tirar aos pobres para dar aos ricos”; e

Para que o dedicado profissionalismo, estribado na competência, estudo e atualização, nunca escorregue para o nível da mediocridade;

− Vão os meus votos de Bom Natal e Próspero Ano de 2014 para todos os amigos e amigas.

 

Ainda a PACC do sprofessores

19-12-2013 23:19

O dia 18 de dezembro de 2013 fica na História Portuguesa da Educação com a marca dos piores motivos. O motivo de fundo é a prova em si, que significa um insulto à inteligência da generalidade dos docentes. 

Mas há outros aspetos verdadeiramente lamentáveis. O ministro da tutela caiu voluntariamente na esparrela ao afirmar que os critérios de exigência são muito diferentes nas universidades e nas escolas superiores de educação. Embora o líder da agência de avaliação do ensino superior tenha vindo a terreiro afirmar que fora recomendado o encerramento de mais cursos em universidades que  nos institutos politécnicos, em que se integram as escolas superiores de educação, ninguém entendeu que o ministro da tutela quisesse afirmar a superior eficiência e qualidade do ensino politécnico sobre o das universidades, mesmo que só no quadro da formação dos professores. Por outro lado, os cursos de formação inicial de formação de professores encerrados (que representam uma percentagem ínfima no conjunto dos cursos superiores), foram somente seis (3 licenciaturas e 3 mestrados), e tudo em instituições privadas, o que o ministro não quer reconhecer. Por isso, bem compreendo o coro de alunos,  recém diplomados, professores e dirigentes dos politécnicos a defender a camisola politécnica; ao invés, fica totalmente arrodilhado o pergaminho governativo quando vem a toque de caixa acusar o teor artificial da polémica, a defender o indefensável.  Eu ouvi o ministro com estes meus dois ouvidos!

Contudo, os professores examinandos, que tinham razão no protesto, deram um mau sinal à população. Atitudes como aquelas de insultar vigilantes, escrever chocarrices nas folhas de prova, fazer barulho dentro das salas, bater nas janelas de salas de exame ou chegar atrasados à prova - não testemunham serenidade e racionalidade que se impõem. Por outro lado, vir à rua protestar e ir a correr fazer a prova é inconsequente; protestar contra a prova e apupar professores dos quadros que se prestaram à greve à vigilância em prol dos contratados não é digno de cavalheiros ou de damas (e quer esta gente no futuro ensinar formação cívica...). Por seu turno, os docentes de quadro vão à vigilância quando antes alinharam no protesto e ouviram aos governantes que isto é uma prova de futuro para ingresso na carreira e, pasme-se, de manutenção.

E, por fim, o ministro, chegou pela negativa a equacionar a hipótese de a universidade dar licenciaturas de pivô de televisão, pois,  como o locutor não poderia rejeitar um teste aquando da admissão na RTP, também os professores não podem recusar o exame.

E que mais virá por aí!

Braga de Macedo e o Tribunal Constitucional

18-12-2013 23:00

 

 

Este que foi ministro das finanças no terceiro governo, de democracia consolidada, presidido por Cavaco Silva profere verdadeiros disparates contra o tribunal constitucional, um órgão de soberania criado pela lei constitucional n.º 1/82, resultante da primeira revisão da constituição fruto de pacto entre o PS e o PSD e que teve os votos favoráveis do CDS. Tal revisão foi o primeiro beliscão no desígnio constitucional de projeto socialista irreversível para o país saído da revolução abrilina. Se em 1978 Mário Soares metera o socialismo na gaveta para salvar a democracia, agora o poder civil político arrebata em definitivo a soberania ao poder militar político. Por outras palavras, o regime libertou-se da tutela do Conselho da Revolução, que legislava em matéria militar, e procedia à fiscalização da constitucionalidade das leis com a ajuda técnica da comissão constitucional.

Ora, afirmar com Braga de Macedo que “os 13 juízes do Tribunal Constitucional não são ajuizados, querem preservar a sociedade sem classes e a economia nacionalizada prescritas pela Constituição aprovada em 1976, têm uma visão demasiado legalista da sua função e que deviam dar mais importância ao memorando assinado com a troika que à lei fundamental” constituem todo o trabalho de reconfiguração constitucional elaborado em 1982 e repetido e ampliado em revisões sucessivas de que a única réstia socialista irreversível é o preâmbulo, que os especialistas justificam com a memória do contexto histórico-revolucionário em que se planteou o regime democrático, mandando às urtigas o facto de os juízes emanarem do parlamento por eleição por maioria qualificada de 10 deles e por cooptação dos restantes ou de todos terem de ostentar sólida formação jurídica e experiência política e a maior parte dever estar integrada nas carreiras da magistratura.

Mas o sábio economista constitucionalista vai ao ponto de zurzir conta o atual Presidente da República, quando perora que “a maioria das decisões do TC sobre medidas austeritárias surgem na sequência de pedidos de declaração de inconstitucionalidade feitos pelo Presidente da República, e em alguns casos (em relação à contribuição extraordinária de solidariedade, por exemplo), contrariam esses pedidos do PR”. E infere que o PR suplanta os juízes no anacronismo e na falta de sapiência e juízo que lhes atribui quando afirma “estes 13 juízes não são homens ajuizados, porque também há mulheres e também talvez por outras razões”.

À mistura com o machismo confesso, delicia os auditórios a que tem acesso com afirmações verdadeiramente lapidares que são congruentes com o desmiolo daquele governante que em debate orçamental para 1994 ri a bandeiras despregadas das intervenções dos deputados da maioria e da oposição, porque todos seriam ignorantes e ele o único esperto, pois era assessorado pelo agora inefável Vítor Gaspar. Das tais afirmações de antologia, registam-se as seguintes expressões: "a ilógica do sistema constitucional português" (1982); "a má constituição fiscal" (2003); e “o atraso singular da ‘mãe de todas as revisões constitucionais’" em 1989”. Parece levar a mal que o TC tenha uma vertente política. Que hipocrisia! Por vezes, ouve-se dizer que a culpa é dos políticos, porque a justiça até funciona. Discordo. Os tribunais não são espaço de querela político-partidária, mas são órgãos do poder, órgãos de soberania (poder político ao mais alto nível). É que a fonte de legitimidade não é somente a eleição; a nomeação, se condicente com as regras ditadas pelo poder emergente do povo, também o é. Os juízes não podem mandar, mas os economistas da grande praça podem?

Já não nos bastava a ditadura das finanças desde 1928. Teríamos de suportar a ditadura dos mercados, do juízo das agências de rating, do luteranismo punitivo de Merkel, do massajamento dos números e do gozo dos percentis.

E é o que temos na lógica de que é preciso silenciar a constituição calando os seus intérpretes legítimos para que se imponha a ditadura da finança, hoje sob a capa do memorando de entendimento, amanhã provavelmente com a exaltação da pobreza como caminho altruísta para a salvação eterna dos mais ricos. E, de futuro, em vez da “salus reipublicae lex suprema esto”, gritar-se-á “salus divitiarum suprema lex esto”.

Por isso, à luz de outra narrativa, contra os glutões, marchar, marchar!

Nossa Senhora do “O”, da Expectação ou do Advento

17-12-2013 23:19

Em tempos idos, no segundo milénio, um exímio professor de História em escola secundária estranhava o facto de o também licenciado em História pároco da freguesia onde o docente residia com a família, alinhar com o povo na designação de Nossa Senhora da Conceição, com santuário próprio servido por duas capelas e parque circundante lá no Cabeço da freguesia, quando na douta opinião do estudioso de História se tratava da Senhora do Ó. Ao seu afiançamento com base nos motivos escultóricos da imagem exposta ao culto público eu opunha a não rara mistura de motivos iconográficos, fruto da inicial leitura catequética da imagem e da contaminação artística, bem como o facto de se tratar da mesma entidade – a Virgem Maria – com vários títulos e, por consequência, várias imagens, a ponto de, por vezes, os populares se perderem na discussão sobre qual a mais santa, se a Senhora da Lapa, se a Senhora de Fátima, se a Senhora do Rosário, se a Senhora das Necessidades, etc. Eu até argumentava que o dito professor, sendo o mesmo, era passível de várias denominações, todas sérias: colega, para os professores; stor, para os alunos; freguês, na loja de comércio; pai, para os filhos; marido, para a esposa; filho, para os pais; munícipe para o presidente da câmara; paroquiano, para o pároco; e assim por diante.

Quanto à designação de Senhora do Ó, em tempos, os guias do museu de Grão Vasco apontavam duas explicações: a forma arredondada do seio da senhora grávida bem perto do momento de dar à luz; e a teológica afirmação da virgindade de Maria antes, durante e depois do parto, a assimilar à letra “O” o processo de, por obra do Espírito Santo, o Cristo ter entrado no ventre materno e  dele ter saído por divina graça tal como o sol pela vidraça.

Ora, a origem da denominação de Nossa Senhora do O é muito mais histórica, litúrgica e teológica do que o sustentado acima, como, a seguir, discriminamos.

Nossa Senhora do O é uma devoção mariana surgida em Toledo, na Espanha, remontando à época do X Concílio, convocado pelo rei Recesvinto no ano de 656 e presidido pelo arcebispo Santo Eugénio, quando se estipulou que a festa da Anunciação fosse transferida para o dia 18 de dezembro. Sucessor seu no cargo, seu sobrinho, Santo Ildefonso, determinou, por sua vez, que a festa se celebrasse no referido dia, mas com o título de Expectação do Parto da Beatíssima Virgem Maria. Pelo facto de, no ofício de vésperas dos dias 17 a 23, se proferirem as antífonas maiores (hoje, antes do cântico neotestamentário do Magnificat da Virgem Maria), iniciadas pela exclamação (ou suspiro) “Oh!”, o povo teria passado a denominar essa solenidade como Nossa Senhora do Ó, enquanto a Liturgia se lhe referia abreviadamente como festa da Expectação. E a missa, em que se lia o evangelho da Anunciação, escrito nos livros medievais a letras douradas, dizia-se missa áurea. Hoje, no missal romano, renovado segundo os ditames do Concílio Vaticano II, a missa cujos textos mais se aproximam da missa áurea, celebra-se a 20 de dezembro.

Em Portugal, o culto à Expectação do Parto ou a Nossa Senhora do Ó, ter-se-ia iniciado em Torres Novas, onde a imagem da Senhora era venerada na capela-mor da Igreja Matriz de Santa Maria do Castelo. Esta imagem era conhecida à época de D. Afonso Henriques por Nossa Senhora de Almonda  (devido à proximidade do rio Almonda), à época de D. Sancho I por Nossa Senhora da Alcáçova  (c. 1187) ou, a partir de 1212, quando se lhe edificou (ou reedificou) a igreja, por Nossa Senhora do Ó. Frei Agostinho de Santa Maria descreve a imagem nos seguintes termos:

É esta santa imagem de pedra, mas de singular perfeição. Tem de comprimento seis palmos. No avultado do ventre sagrado se reconhecem as esperanças do parto. Está com a mão esquerda sobre o peito e a direita tem-na estendida. Está cingida com uma correia preta lavrada na mesma pedra e na forma de que usam os filhos de meu padre Santo Agostinho.

Sob este título, é a padroeira de 23 freguesias portuguesas. Na Madeira, as comunidades continuam a promover as tradicionais ‘missas do parto’, em regime de novena preparatória do Natal, que decorrem habitualmente ao início da manhã. As ‘missas do parto’ são uma tradição particular do arquipélago, um momento oportuno para cantar versos populares em honra da Virgem Maria e do Menino Jesus, alguns dos quais remontam aos primeiros povoadores. Acresce dizer que a estrutura da novena contém a invocação ao Espírito Santo, o canto da ladainha, o retrato da Senhora e a missa, onde também são entoadas loas à Virgem, ao seu parto e à alegria do nascimento de Jesus.

A imagem da Senhora do Ó apresenta sempre a mão esquerda espalmada sobre o ventre avantajado, em fase final de gravidez. A mão direita pode também aparecer em simetria com a outra ou levantada. Encontram-se espécimes com esta mão segurando um livro aberto ou também uma fonte, ambos significando a fonte da vida.

No começo do século XIX, o culto mariano começou a estimular o caminho para a definição dogmática da Imaculada Conceição, o que não combinava com aquela figura em estado de adiantada gravidez, estimada pelas mulheres à espera da hora do parto. Assim, muitas imagens foram trocadas pela de Nossa Senhora do Bom Parto ou Nossa Senhora do Bom Despacho, vestida de freira, com o ventre disfarçado pela roupa, ou mesmo pela imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, mais congruente com os ventos moralistas de então. Por outro lado, não dava esculpir uma imagem da imaculada conceição (stricto sensu), um ícone que realisticamente teria de ser microscópico (não exponível ao culto), e muito menos a da ação marital de Joaquim e Ana, ainda menos decorosa para o culto de “dulia. Havia que tirar partido dos elementos da economia da salvação: imagem de donzela na força da bela juventude, a “cheia de graça”, como a denominou o anjo Gabriel no momento da saudação à anunciada; mulher com o pé a esmagar a cabeça envenenada do dragão enganador, conforme a previsão do protoevangelho (cf Gn, 3,15); a senhora da conceição virginal de Jesus, espelhada na gravidez, em que se revê por analogia o momento da imaculada conceição; ou a senhora com o menino ao colo, pois, segundo Duns Scoto, era sumamente conveniente que Deus preservasse Maria do pecado original, pois a Santíssima Virgem era destinada a ser mãe do Seu Filho.

Somente em finais do século XX se voltou a falar e pesquisar sobre a temática da Senhora do O, da Expectação e do Advento, tendo-se encontrado imagens antigas enterradas sob o altar de igrejas. É Senhora do SIM (do Ok) àquele que é o Princípio e Fim, A (alpha) e Ω (ómega), a senhora profetizada no Génesis como a figura associada à descendência da mulher e a mulher do retorno (a volta em O) à preternaturalidade no fim do tempo descrita no Apocalipse (cf Apoc 12,1-2 e13-14).

A Encarnação é também o mistério da colaboração responsável de Maria na salvação recebida como dom. Revela-nos que Deus, para salvar-nos, escolheu essa pedagogia, a de passar através do homem: "... e o Verbo se fez carne e veio habitar no meio de nós... e nós vimos a sua glória" (Jo 1, 14).

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