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No que ao respeito diz respeito

01-02-2014 15:08

No que ao respeito diz respeito

O termo respeito e outros que tais da mesma família gramatical são utilizados em contextos tão diversificados que o conceito por eles veiculado se torna manifestamente plurívoco. Desde o governo que protesta respeitar o Tribunal Constitucional, mas prepara legislação em parte contradicente dos seus acórdãos, à pessoa que assegura não ter medo de uma trovoada, mas um certo respeito, passando pela simples referência “a respeito de…”, tudo serve, até o envio de “os meus respeitos” à pessoa que recentemente me apresentaram. Afirmações como “a pessoa que se preza dá-se ao respeito e exige que a respeitem”, “é preciso respeitar a autoridade”, “respeitar os valores axiológicos”, “respeitar a distância entre veículos” e “respeitar os direitos dos trabalhadores” ou “respeitar o código do trabalho” são princípios comummente aceites. Já não serão para levar a sério estribilhos como “o trabalho é sagrado: respeita-o, não lhe toques”. E é de ingénua enunciação, de desviante entendimento ou de interpretação muito restrita a asserção popular que ouvi quando a RTP, em 1985, apresentou o filme “O obcecado”: perante o facto de um indivíduo que sequestrou uma mulher e lhe infligiu os piores tratos pondo-a, por várias vezes, às portas da morte, algumas telespectadoras comentavam: “Que grande safado! Tratou-a de resto, mas, graças a Deus, não lhe fez mal, nunca lhe falou ao respeito”.

Perante um panorama lexical e semântico tão diversificado, entendi dever dar-me à sinecura de apurar os significados conceptuais do vocábulo “respeito” e de alguns dos da mesma família de palavras. E, uma vez que se trata de palavra cujo étimo latino é o “respectum”, acusativo do singular de respectus, us da 4.ª declinação, consultei F. Gaffiot, em Dictionnaire Latin-Français (1934, Librairie Hachette), e Francisco Torrinha, em Dicionário Latino-Português (1945, Edições Marânus, 3.ª ed). No primeiro (pg 1352), podemos ler, para respectus, 1 action de regarder en arrière; 2 consideration, égard; 3 possibilité de regarder vers quelque-un ou quelque chose, c’est-à-dire de compter sur quelque-un ou quelque chose, recours, refuge. No segundo (pg 748), encontramos 1 ação de olhar para trás; 2 vista, espetáculo (para quem se volta para trás); 3 consideração (deferência), respeito, atenção; 4 asilo, refúgio. Ambos relacionam o vocábulo com os verbos respicere e respectare, que têm significados muito próximos do nome masculino de que ora tratamos, bem como com o nome feminino species, ei, da 5.ª declinação (que significa aparência, vista, rosto ou espécie), e com os verbos specere ou spicere (avistar, ver, olhar) e spectare (olhar, contemplar; observar, considerar, prestar atenção, esperar, ter em vista, analisar, apreciar, julgar, relacionar-se, pertencer, referir-se).

O Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2011, pgs 521.929.1385-1386), da coleção Dicionários Editora, tem a recensão de respeito (nome masculino, com a origem latina em respectu, já com a apócope de -m) e as correspondentes derivadas com os prefixos des- e in- (ir-, por assimilação consonântica) e com vários sufixos  em diversas aceções – 1 ato ou efeito de respeitar; 2 consideração, apreço; 3 deferência, acatamento, veneração; 4 homenagem, culto; 5 temor, receio; 6 relação, referência; 7 aspeto, ponto de vista; (no plural, respeitos) cumprimentos – e integrado em locuções, como a respeito de, com respeito a (relativamente a), conter em respeito (manter a distância, não deixar aproximar-se), de respeito (notável), dizer respeito a (ter relação com, referir-se a), faltar ao respeito a (ser descortês com, ser inconveniente com), por respeito a (em atenção a). E temos entradas lexicais para: respe ou réspice (descompostura, repreensão); respeitabilidade; respeitado e respeitador; respeitante, respeitável e respeitavelmente; respeitoso; respetivo e respetivamente; e outras com os prefixos des- e in-.

Sendo assim, o que é o respeito? Tudo o que fica dito no primeiro parágrafo condiz com a noção de respeito. Porém, o respeito pela trovoada é mesmo medo; o trabalho, por ser sagrado, não implica que se lhe não toque, mas que seja considerado ou tido em conta; e é preciso banir a hipocrisia de quem diz que respeita uma decisão, mas não a acata, ou seja, age em sentido desviante ou mesmo contrário.

Por seu turno, a Wikipédia (enciclopédia livre, acedida em 2014.02.01), que passamos a seguir de perto, esclarece que o respeito consiste num sentimento positivo de estima por uma pessoa ou para com uma entidade e também abrange ações específicas e condutas representativas de tal estima. Pode mesmo corporizar um sentimento específico de consideração pelas qualidades reais do outro ou a conduta de acordo com uma moral específica. Nestes termos, “ser rude é considerado uma falta de respeito (desrespeito) enquanto ações que honram a alguém ou a alguma coisa são consideradas respeito”. Muitas culturas dispõem de morais específicas de respeitos às quais atribuem uma importância fundamental.

Porém, “respeito” distingue-se de “tolerância” porque tolerância não compagina necessariamente nenhum sentimento positivo, e não é compatível com desprezo, o contrário de respeito. Vindo, como vimos, a palavra respeito do latim respectus, que, por sua vez, provém de respicere que significa olhar para trás e se prolonga semanticamente em respectare, evoca a ideia de julgar alguma coisa em relação ao que foi feito quando é valioso ser reconhecido. Além disso, a noção de respeito implica a sua aplicabilidade a uma pessoa que fez algo certo, mas também a qualquer coisa afirmada no passado como uma promessa, a lei, etc.

Por isso, assumo atitudes de respeito quando: respeito o nome de Deus não O invocando em vão, porque é sagrado e Lhe presto o culto latrêutico; cumpro a lei e os regulamentos; reconheço os direitos humanos; guardo as distâncias em relação aos perigos e às pessoas a quem devo reverência (recorde-se a “mesura” das cantigas de amor medievas); ajudo aqueles com quem devo colaborar ou que precisem da minha atenção e auxílio; acato as decisões de quem de direito e obedeço aos meus superiores hierárquicos naquilo que não contrarie a lei e a consciência pessoal e profissional; sigo escrupulosamente a minha consciência, contra as pressões, ambições, oportunismos e acomodações; relaciono-me com as pessoas, cumpro os meus deveres e exerço os meus direitos ou a contento ou reivindicando-os com firmeza e persistência; abordo as diversas matérias em que me sinto competente por força do conhecimento ou por disposição legal e mobilizo todos os assuntos relacionados com elas consoante a sua pertinência; preservo o alheio, o sagrado, o valioso; e curvo-me perante os símbolos das realidades imateriais ou das coletividades que integro ou que outros integrem. Mas, sobretudo, disponho-me a olhar para trás, ou seja, a refletir responsavelmente sobre as minhas opções de vida e de ação e os meus atos em concreto, a ver o que pode melhorar, e até que ponto há alguém que precise de ser ouvido, atendido ou ajudado. Por outro lado, numa linha de convivência sadia, dou livremente a minha opinião, sem a impor, e considero as opiniões e a postura dos outros, evitando qualquer juízo precipitado ou desnecessário. E não deixo de cumprir o que prometi no quadro da fidelidade à palavra dada ou aos juramentos e declarações em que empenhei a minha palavra de honra.

E, ao mesmo tempo, não descuro os deveres para comigo, tanto materiais e corporais como culturais e espirituais, na convicção de que, se não me habituo ao autorrespeito, cuidando de mim e dos meus legítimos interesses, não estou capacitado para respeitar os outros nem para deles exigir respeito.

Enfim, o cidadão que se preze autorrespeita-se, respeita, dá-se ao respeito e faz-se respeitar!

Quanto à seleção de vocábulos

31-01-2014 18:41

Quanto à seleção de vocábulos

Deu entrada na mesa da Assembleia da República um projeto de lei do Partido Comunista para a recuperação dos quatro feriados em tempos suprimidos ou suspensos por razões de austeridade, produtividade, competitividade e outras palavras derivadas terminadas pelo sufixo -dade, como por exemplo inevitabilidade. Não sei se o projeto de lei teria ou terá hipótese de singrar face à atual correlação de forças na Casa da Democracia, mas o que irritou os outros parlamentares foi o facto de na portada do documento constar a palavra “roubo”, que os subscritores do projeto, de imediato, se prontificaram a retificar.

O argumento de contestação consistia basicamente na ousadia atentatória de chamar de roubo a uma lei aprovada por uma maioria num parlamento democrático, fruto de duma decisão política legítima (tratava-se da alteração ao Código do Trabalho em que foram quatro feriados “subtraídos” aos “privilégios” dos trabalhadores – estarei a selecionar bem os vocábulos?).

Oscilante entre a dita ousadia atentatória e a concomitante irritação parlamentar, lembrei-me de consultar dois dos dicionários da nossa praça cultural. E li:

“roubo – n.m. 1 ato ou efeito de roubar; subtração ou imposição de entrega de coisa móvel alheia, com ilegítima intenção de apropriação, cometida com violência ou ameaça 2 coisa roubada 3 (fig) preço excessivo 4 (direito) crime contra a propriedade” (cf Dicionário da Língua Portuguesa, 2011, da Porto Editora).

O Novo Aurélio da Língua Portuguesa, da Editora Nova Fronteira, no verbete “roubar”, acrescenta à tal subtração de coisa móvel alheia os segmentos “para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la reduzido, por qualquer meio, à impossibilidade de resistir”.

A fazer fé nestes dicionários, que as autoridades não se atreveram a retirar do mercado, a supressão dos feriados (seja por subtração definitiva, seja por inibição transitória de sua fruição) é um roubo, pelas seguintes razões: tinham sido entregues aos cidadãos, nomeadamente aos trabalhadores, por lei e o seu gozo estava radicado na tradição portuguesa; de nada valeram as ações de resistência, quer em nome da inutilidade quer em nome dos direitos adquiridos; trata-se de bens, embora imateriais, que nõ são do legislador, e, pelo menos, um deles é um feriado “móvel” (o Corpo de Deus); e, se o legislador não os retirou para si, fê-lo em favor do capital, ainda que sem proveito significativo. Os referidos dicionários não ilibam do designativo da ação de roubar quem quer que seja, ainda que se trate do Parlamento, ou que a decisão seja de caráter político. De resto, ninguém duvida de que um ato não mudará de caraterização moral só porque passou a ser consignado em lei. Ou será que já não podemos falar de leis injustas e iníquas, à quais São Tomás de Aquino entendia que se poderia, e nalguns casos deveria, desobedecer ou em relação às quais se continua a legitimar a desobediência civil? Por outro lado, há que distinguir entre a legalidade de um ato (ou seja a sua conformação com a lei) e a sua legitimidade, proveniente de quem de direito ou da sua justeza e utilidade. E a supressão dos feriados é legal e é legítima do lado da autoria, mas não é justa nem útil.

A pari, temos de considerar como roubo os cortes atrabiliários de salários e de pensões, pelas circunstâncias que emolduram tais decisões, pelos prejuízos causados a muitos dos atingidos e pela desfaçatez dos alegados benefícios. A atermo-nos a estes, é de questionar: se contribuíram para a diminuição da despesa pública ou se ela aumentou; se com tais cortes se reduziu sustentavelmente o défice público; ou se a dívida soberana e o seu serviço diminuíram. Pelos dados disponíveis, tem de concluir-se pela inutilidade dos cortes em si mesmos. Também por extensão terá de ser considerado roubo (chame-lhe ou não) o selvagem aumento dos bens essenciais à condigna vida das pessoas, em proporção inversa à diminuição do rendimento das famílias, e sem que os poderes estaduais tenham qualquer papel interventivo – moderador ou regulador.

A propósito de linguagens utilizadas, recordo o episódio exemplar em que Jaime Gama, então Ministro do Estado e dos Negócios Estrangeiros, ao encerrar um debate parlamentar em nome do governo de Oliveira Guterres, numa das suas infelizes tiradas discursivas, chamou ignorante à deputada Manuela Ferreira Leite, que ripostou à sua maneira. Aí, o Presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, interveio considerando excessivo e fora do léxico parlamentar o facto de o senhor ministro ter chamado ignorante à senhora deputada e esclarecendo que, quando muito, poderia ter referido que ela revelava alguma ignorância naquela matéria. Estamos no capítulo das realizações eufemísticas – v g “quente” ou “contente” em vez de bêbado, “comportamento desviante” em vez de “crime”, “com defeito de fabrico de que o próprio não tem culpa” em vez de “maluco”.

É óbvio, quanto à seleção vocabular, que não é necessário (será até mesmo indecoroso) mimosear as bancadas adversárias ou o mero interlocutor com determinadas palavras que não quadram num saudável léxico parlamentar ou na sadia relação interpessoal, mas também não é caso para os ofendidos virem carpir-se com tamanha dose de indignação com o suporte da legitimidade política ou com o prestígio da Casa da Democracia que tantas vezes Suas Excelências os Senhores Deputados da Nação (perdão, do Povo) menosprezam. Vejam-se os casos episódicos: de veto de idas de membros do governo ao parlamento; das grandes clareiras nas sessões plenárias; das situações de sono e sonambulismo no hemiciclo; dos aproveitamentos abusivos das disposições regimentais; da indicação da personalidade A ou B como autora da lei x ou do decreto-lei y (quando nós sabemos que a República aboliu a figura do legislador individual, sendo esta figura de legislador desempenhada pela assembleia e/ou pelo governo); da excessiva responsabilização do governo pela produção legislativa, quando, em última análise, a decisão legislativa é parlamentar e o ato de promulgação é presidencial; da não contagem individualizada dos votos; da imposição da disciplina partidária em questões de consciência ou da sua observação forçada contraditada por subsequentes declarações de voto; e de episódios como o mais recente da decisão de um referendo só para atraso de conclusão de processo legislativo e sua aplicação no ordenamento jurídico.

Já não me refiro ao tratamento anedótico de algumas questões, como: chamar “roubo” à subtração de uma média quantidade de dinheiro feita por um simples cidadão e “desvio” ao desfalque vultuoso praticado por um magnate da política ou da finança; referir que a mulher pobre “pariu um moço” e a rica ou da alta roda social e política “deu à luz um novo rebento”; ou rotular de “zaragata as bulhas” entre operários ou homens do povo e “desentendimento” as rixas entre pessoas ricas ou importantes.

Enfim, porque nos entretemos tanto com as designações e menosprezamos as equações? Porque aplicamos tanto das nossas energias ao acessório e descuramos o essencial? E porque acusamos tanto e insistentemente os outros e pregamos aos quatro ventos a nossa indefetível inocência?

Sobre os elogios ao Papa Francisco

30-01-2014 22:06

Sobre os elogios ao Papa Francisco

O Padre Frederico Lombardi, porta-voz do Vaticano, lamentou, a 29 de janeiro, que o artigo da revista Rolling Stone sobre a figura do Papa Francisco tenha, a pretexto do enaltecimento da obra deste pontífice, aliás bem-vindo, se tenha arrogado o direito de “descrever de maneira negativa o pontificado do papa Bento XVI”. E classifica essa postura como um erro de jornalismo bastante usual nos nossos dias.

Sempre me ensinaram e tenho havido o cuidado de levar à prática a máxima de que para dizer bem de uma pessoa, grupo ou instituição não necessitamos de denegrir a sua homóloga. Estamos num mundo em que a convivência democrática tem de ser extensível às pessoas, às ideias e aos estilos. A este respeito, afigura-se-me que a democracia está ainda muito imatura nos diversos recantos do orbe.

Quanto ao exercício do múnus petrino, nas últimas décadas, tenho de reconhecer que, graças a Deus, longe vão os tempos do nepotismo papal ou da supremacia política do Chefe da Igreja Católica e, como ensinava em tempos o então professor de História da Igreja, o Dr Jacinto Botelho, hoje bispo emérito de Lamego, os últimos papas têm sabido ler os sinais dos tempos e exercer o seu ministério segundo as condições do mundo atual. Erros de perspetiva e até de opções, falhas diplomáticas e insucesso no entrave aos conflitos entre povos ou na exigência de respeito pelos direitos humanos têm existido indubitavelmente. Porém, a Santa Sé, diretamente ou através dos seus representantes, quer permanentes quer temporários, tem trabalhado com inegável denodo para a minoração dos atropelos à dignidade das pessoas e dos povos, inclusive das minorias ou daqueles, cujo número é assustadoramente crescente, que, pela falta de vez e de voz, têm sido remetidos para a condição de menoridade humana, muitíssimos deles abaixo do limiar de pobreza. Quem dera que as diplomacias não eclesiásticas trabalhassem com o mesmo grau de afinco e com o mesmo suporte ético!

No atinente ao papa Francisco, não haja dúvidas de que inaugurou uma erra de mudança, que se esperava, para mais da parte de alguém que os cardeais foram buscar ao fim do mundo, segundo a sua própria expressão. E penso que não se trata somente de uma mudança de estilo: mobiliza mesmo os cordelinhos da real e profunda humanitas enquanto espelho da ternura divina e expressão da solicitude apostólica; sem descurar a amplidão e profundeza teológicas, parte a doutrina em pedacinhos tal como o pater o fazia em relação ao pão para os filhos, segundo o lema do Congresso Eucarístico Internacional de 1981, Cristo “o Pão Partido para um Mundo Novo”, ou, se quisermos, na sequência da frequente celebração da Eucaristia dantes denominada “Fração do Pão”. Pena é que alguns dos seus gestos, bem exaltados pela “amiga” Comunicação Social, mais não tenham servido que para repor um pouco de bom senso na gestão dos bens eclesiais em que os seus agentes muitas vezes se comportavam como donos e não como servidores (diáconoi), ou como fiscais da fé em vez de seus promotores.

Tenho, entretanto, receio de que, apesar de serem louváveis os elogios à revolução franciscana, obnubilem os materiais verbais e gestuais do magistério dos predecessores do papa argentino. Sem me arrogar à postura de franco admirador de Bento XVI, tenho o dever de fazer jus à sua palavra bem clara e ousada, aos gestos de atenção aos ínfimos pormenores de atuação das pessoas e a algumas das suas iniciativas (o ano paulino, o ano sacerdotal, o ano da fé…), bem como aos problemas que mal ou bem lhe caíram em cima da mesa da discussão e resolução (pedofilia, questões financeiras, levantamento da excomunhão ao bispo da Fraternidade São Pio X que negou o holocausto…). De igual modo me custa admitir que (e este é, por motivos biográficos, o meu papa de referência) se subestime o papel do Papa Paulo VI na condução da maior parte do concílio e aplicação de suas disposições, bem como seus gestos, palavra ousada e iniciativas carregadas de simbolismo.

Como dizia Jorge Coelho, não há memória, mas – acrescento eu – devia haver. E sobretudo é desagradável verificar que acomodaticiamente se atribuam a outrem a paternidade de palavra, gesto e iniciativa só por que foram replicados e desenvolvidos.

Não creio que Francisco tenha o objetivo de trilhar essa escusa estrada, até porque o relacionamento com o papa emérito se tem revelado cordial e fraterno e, no seu discurso, faz questão de se ater à sua herança teológica e pastoral, citando-o um sem número de vezes e atribuindo-lhe a coautoria da sua primeira encíclica. E, se é previsível uma reforma da Estrutura eclesiástica, plasmada num reforço da colegialidade e da descentralização e na diferença de abordagem das matérias mais quentes, focando os dados essenciais, não é crível que a revolução ponha em pantanas a doutrina que compagina o depositum fidei, não sei mesmo se as questões disciplinares de bandeira como a obrigatoriedade do celibato eclesiástico e a ordenação de mulheres.

Todavia, o jornalismo é o que é. Ainda há pouco as redes sociais transcreviam um testemunho da exímia vaticanista Aura Miguel em que a jornalista da Rádio Renascença, entre outras coisas, referia que Francisco tanto estava bem a conversar com um amigo como a ir levar ao vizinho Bento XVI uns croissants mornos como ele gosta. Esta ilação resulta de um episódio em que, dando-se pela sua ausência num determinado momento em hora de refeição, na Casa de Santa Marta, os homens da segurança o surpreenderam nos jardins do Vaticano a caminho do mosteiro Mater Ecclesiae com uma embalagem dos ditos croissants para o predecessor Ratzinger.

E eu fiquei-me na interrogação: Será que o emérito não passará de um simples vizinho, não será também um amigo e um amigo especial?

E, se Bento XVI era Bento XVI, antigo guardião da ensinável Teologia na Congregação da Doutrina da Fé, Francisco é Francisco, o promotor de um novo rosto da bem alicerçada teologicamente ação pastoral. Valeu?

Banalização das instituições

29-01-2014 23:10

Banalização das instituições

O tema desta reflexão surgiu-me proximamente da leitura de artigo de Humberto Oliveira em O diabo desta semana. O articulista tece algumas considerações sobre o decurso da cerimónia da condecoração de Cristiano Ronaldo pelo Presidente da República no Palácio de Belém. Não questionando o mérito que justifica, a seu ver, a atribuição de tal honorificência, faz o levantamento do que inscreve na ótica da propaganda ou da busca da popularidade fácil.

Ora, se vem sendo usual o clamor pela falta de prestígio das instituições e do pouco interesse que despertam na opinião pública e, em especial nas camadas jovens, haveria que atentar nas suas causas e intentar a reposição da sua dignidade institucional e concitar o agrado dos cidadãos.

Todos concordam que uma das causas será o acesso aos escalões do poder político e da administração pública por parte de gente impreparada politicamente e, muitas vezes, sem a bastante qualificação académica ou experiência profissional. Outro fator não estranho à desmotivação crescente pela coisa pública será o persistente incumprimento das promessas feitas perante o eleitorado ou mesmo o agravamento das condições de vida do povo a seguir à posse dos novos detentores do poder. Também não será despiciendo o facto do aumento das condições de vida dos anteriores titulares dos cargos públicos, a melhoria de condições económicas e logísticas do desempenho dos governantes e deputados coevo ao respetivo período de exercício e as perspetivas de abertura de futura prateleira dourada aos presentes titulares dos poderes, nas instâncias internacionais, mormente europeias, ou nas grandes empresas que “dialogam” eficientemente com o Estado.

Porém, o referido e apreciado articulista põe o dedo em outra ferida, que eu gostaria de chamar ”arrapazamento do Estado”. Com a busca da popularidade fácil, os deputados, os governantes e até o supremo magistrado da nação expõem-se em todo o lado, falam de qualquer modo, sujeitando-se à necessidade de, a seguir, virem a explicar o inexplicável ou a desdizer o indesdizível. Um ex-presidente, visto a assistir a um jogo de futebol, chegou a alegar a sua justificada atitude com o regresso a esta cidadania mais banal (a cidadania, sendo o estatuto do homem com direitos e deveres, na liberdade de intervir, não pode ser banal nem banalizar-se). Um ex-secretário de Estado da área da educação, ao tempo que desempenhava a respetiva função, não sabia dirigir-se ao Parlamento. A Presidente da Assembleia da República (e os seus substitutos eventuais na mesa seguem-lhe o exemplo) esganiça a voz quando tem necessidade de mandar evacuar as galerias e dá asas ao seu profundo nervosismo; achou normal a escalada da escadaria exterior da Assembleia durante a manifestação das forças de segurança, porque não entraram no edifício e desceram logo que para tal receberam ordens; casou as dificuldades financeiras com a atribuição das honorificências panteónicas ao rei do futebol; e, com grande gabarito escolástico, terá admitido que as manifestações no exterior do palácio parlamentar são atos democráticos, ao passo que, se ocorrerem nas galerias, serão crime. Depois, como se podem levar a sério as instituições de referência para o cidadão?

Dispenso-me de confessar que acompanho Humberto Oliveira nas críticas que profere em torno das quebras de protocolo na aludida cerimónia em Belém, de que se destacam as que incidem sobre: o vestuário da assessora de desporto e juventude, idóneo para uma festa social, que não para um ato protocolar; a alteração da sequência dos atos da cerimónia (que deveria ter sido: primeiro, a leitura do auto; a seguir, a assinatura; e, somente depois, os discursos); a solicitação gestual da primeira-dama, durante a cerimónia, a que o condecorado tivesse uma pequena atenção para com os ilustres netinhos; a entrada na sala do condecorando a par do condecorante (Viva a igualdade! O indivíduo, por maior que seja o mérito que lhe assiste, nunca é igualável ao povo representado e simbolizado pelo Presidente.); e o facto de o chefe da Casa Civil vir buscar ao exterior o homenageado, postura que nem em relação a chefes de Estado se assume.

Também passo em silêncio as belas tiradas do Presidente sobre as hipotéticas escutas a Belém eventualmente ordenadas por São Bento; os públicos trenos derramados sobre a penúria das suas pensões de reforma e aposentação, bem como as da consorte; o braço de ferro com o governo socrático de apoio parlamentar maioritário sobre o estatuto autonómico dos Açores; o discurso de posse presidencial a 9 de março de 2011; e a tergiversação entre o respeito pelo nervosismo dos mercados e o girafismo ante a Europa e a economia mundial, a espiral recessiva e o horizonte luminoso do período pós-troika, ou a demarcação frente à governança e a sua colagem à maioria.

Em abono da minha congruência de pensamento com o desígnio da Administração Pública, apraz-me referir que sempre vociferei contra o facto de, nas primeiras sessões do Parlamento dos Jovens, os rapazes e as raparigas ocuparem o lugar dos deputados no hemiciclo. Achava eu que esses esquemas de discussão, tão positivos que eram e são, não necessitavam dessa forma artificiosa de expressão. É óbvio que concordei quando essas sessões passaram a decorrer na Sala do Senado ou noutro espaço condigno que não o simbólico, o do Plenário.

Mas a crítica ao desprestígio institucional não se fica por Presidente, Parlamento ou Governo. Os operadores da Justiça não se ficam atrás. Exemplifico somente com umas tantas coisas: para o conserto da rede de fuga do segredo de justiça cada vez mais esburacada, o remédio consistente da busca nas redações dos jornais; ou para a justiça-espetáculo que se pratica morosa, praticamente sem efeitos, em torno de casos ditos mediáticos – vg Casa Pia, Apito Dourado, Free Port, Face Oculta, BPN – a adaptação da Justiça aos novos tempos; e ainda, para a moralização da vida pública a desjudicialização, o encerramento de tribunais, as reformas dos códigos, etc. (E, se quisermos ocupar o nosso tempo em coisas úteis, ficaremos verdadeiramente edificados com a leitura de suficientes comentários bizarros em alguns acórdãos de tribunais)

Enfim, se o país precisa, como de pão para a boca e de ar para os pulmões, de produtividade e competitividade, as instituições, maxime as do Estado e seus titulares têm imperiosamente de conquistar a credibilidade, inspirar confiança e tornar apetecível o zelo pela res publica.

Da periferia para o centro ou do centro para a periferia?

28-01-2014 01:30

Da periferia para o centro ou do centro para a periferia?

A propósito das leituras da Liturgia da Palavra para o Domingo III do Tempo Comum, o Padre Vítor Gonçalves, conforme texto transcrito pela Agência Ecclesia, percebe o percurso de Jesus a começar pela periferia, a Galileia, e a dirigir-se para o centro, Jerusalém, onde culmina na glorificação através da morte e morte de Cruz e se apresenta ressuscitado às mulheres e aos discípulos. É por essa razão que, como diz Paulo na Carta aos Filipenses, “Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes” (Fil 2, 9).

A este respeito, o papa Francisco, ao Angelus do passado dia 26 de janeiro, apontando o exemplo da Galileia como o símbolo das periferias por onde Cristo começou o trabalho evangelizador, salienta o seu perfil de terra dos gentios, “zona de fronteira desprezada pelos judeus mais observadores” em religião e “uma zona de trânsito onde se encontram pessoas diferentes por raças, culturas e religiões”. E vê o Pontífice na atuação do Messias uma clara intencionalidade, ensinar-nos que “ninguém está excluído da salvação”.

Tanto Francisco como Gonçalves salientam que Jesus não começou a partir de Jerusalém – o centro religioso, social e político – de onde poderia parecer mais fácil e óbvio. E é nas periferias sociais que o Mestre vai recrutar os principais colaboradores, os discípulos e os futuros apóstolos (são pescadores, publicanos, essénios, sicários e mulheres):

“Não se dirige às escolas dos escribas e dos doutores da Lei, mas às pessoas humildes e simples, que se preparam com empenho para a vinda do Reino de Deus. Jesus vai chamá-los lá onde trabalham, na margem do lago: são pescadores. Chama-os, e eles O seguem imediatamente. Deixam as redes e vão com Ele: as suas vidas tornar-se-ão uma aventura extraordinária e fascinante” – relembra o bispo de Roma, que já exortara os participantes na X Assembleia Geral do Conselho Mundial de Igrejas, realizada em fins de outubro passado na Coreia do Sul, a irem às “periferias existenciais” e a serem solidários com “os irmãos mais vulneráveis”.

É decididamente necessário “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que têm necessidade da luz do Evangelho”, por outras palavras, deixar a comodidade do centro e ir sujar os pés e enlamear-se lá no sítio onde a Igreja pode ficar acidentada. Porém, Francisco prefere ter uma Igreja acidentada porque se desloca e trabalha a uma Igreja doente porque nada faz, não sai: fecha-se, cristaliza!

Entretanto, discutir se devemos caminhar da periferia para o centro ou do centro para a periferia faz-me lembrar duas coisas.

A primeira tem a ver com a natureza e expressão do mandato de Jesus: “Ide, doutrinai todas as gentes” (Mt 28,19). Depois, “eles voltaram para Jerusalém com grande alegria e estavam continuamente no templo a bendizer a Deus” (Lc 24,52). Por fim, com a força do Espírito “partiram por toda parte, cooperando o Senhor com eles e confirmando a sua Palavra com os milagres que a acompanhavam” (Mc 16,20). Assim, se Cristo começou pela Galileia como periferia, os discípulos, que tinham sido recrutados nas periferias, receberam o Espírito Santo em Jerusalém, o centro ora com a força do Espírito, e irradiaram pelas novas periferias da diáspora. E a evolução histórica transformou a sede do império romano em centro de difusão da missionação pelo resto do mundo conhecido, mesmo o novo mundo achado no século XV, o da primeira globalização. O próprio Francisco I veio da periférica Argentina e ganhou a Roma do Vaticano, que guarda os túmulos das colunas da fé, Pedro e Paulo, e se arvora em sede da cristandade num Continente envelhecido à procura da retoma da sua identidade histórica. Mas, primeiro, ele partira na pessoa dos antepassados. O seu consócio António Vieira, no sermão da Sexagésima, bem criticava os pregadores que pregavam sem saírem, quando os pregadores, à maneira do “semeador” evangélico, deviam sair a semear a semente da Palavra de Deus.

A segunda coisa que me ocorre é a diferença entre Cristo e os cristãos, para lá da imitação a que Ele urge (“É este o meu mandamento que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei a vós” – Jo 15,12): Cristo era mestre na multiplicação dos benefícios (vejam-se os casos de multiplicação dos pães e dos peixes), ao passo que os cristãos são chamados à divisão (enquanto distribuição) dos benefícios. Não é por acaso que os primeiros cristãos de Jerusalém possuíam tudo em comum e por todos tudo era dividido, de modo que a ninguém faltasse nada do que era necessário (cf Act 2,42-47; 4,32-37); e os cristãos das outras localidades resolviam o problema das necessidades dos irmãos através das coletas (cf 2 Cor 8,16-24; 9,1-5). No entanto, há uma divisão que é feita a exemplo da divisão que o Mestre fazia e mandou fazer em Sua memória, a fração do pão – a Eucaristia, em que se parte o Pão da Vida e se toma o vinho da Salvação e se distribuem pelos participantes de corpo inteiro e se levam aos enfermos e encarcerados.

E infelizmente há um aspeto em que os cristãos se apuraram em divisão: os cismas e as heresias ou, de forma menos anticristã, a separação em várias religiões cristãs, sabendo que muitas delas têm uma real consciência eclesial, o que as fez enveredar pelo ecumenismo com vista, a prazo, à plena comunhão na fé, a culminar na comum celebração eucarística, o sinal visível da unidade!

Entretanto, caminharemos da periferia para o centro ou vice-versa, entendendo a questão como um problema apenas de método, fixando-nos no essencial. Não podemos acomodar-nos ao conforto do centro, mas devemos dele haurir a força anímica; não podemos desistir das periferias, sob pena de falharmos na busca e desenvolvimento do Reino de Deus.

Periferia e centro são duas dimensões complementares da marcha do povo de Deus: tal como na estrada, se não tivermos em conta a força centrípeta, que impele o veículo para o centro da curva, e a força centrífuga, que o impele para longe do centro, o veículo não se mantém na estrada e a marcha é interrompida, quiçá fatalmente.

Será, pois, a conjugação periferia / centro que encaminhará a persistente aventura do apostolado para o êxito querido pelo Redemptor hominis, "Pão partido para um mundo novo" (lema do Congresso Eucarístico Internacional de Lourdes, 1981).

Falando de palavras

27-01-2014 21:04

Falando de palavras

 A colega Urtélia Silva teve a gentileza, que penhoradamente agradeço, de me enviar um artigo Com respeito às palavras, de Hélia Correia, publicado no jornal Público de 17 de janeiro onde se dá conta do sentido adulterado de algumas palavras com que nos mimoseiam em tempo de crise para larvar o verdadeiro sentido do que nos vai acontecendo por imposição humana dos políticos escorados à retaguarda pelos grandes detentores do capital. E são referidos exemplos como austeridade e indignação. Eu estou totalmente de acordo, mas não resisto a uma reflexão, que alguém poderá ter como útil.

O emprego eufemístico de uma palavra ou expressão mais suave por outra considerada mais asquerosa é frequente mesmo fora dos tempos de crise pandémica como aquela por que estamos a passar. E há casos de grande gravidade. Registo, por exemplo: “interrupção voluntária da gravidez”, por aborto; “pedofilia” (amizade à criança), por abuso sexual de criança em tenra idade (convencionalmente antes dos 12 anos); “vida fácil”, por prostituição; “capital de relação”, por cunha; “competente”, por detentor de cartão partidário; “democrata”, por opositor a um regime ou mesmo guerrilheiro; e “hiperativo”, por mal-educado ou insurreto. Já a Bíblia empregava a expressão “conhecer a esposa”, por ter relações sexuais com ela; e “jurar sobre a coxa de Jacob”, por jurar sobre o órgão masculino então considerado origem da vida. Muitos dos nossos amigos faleceram ou se tornaram defuntos, quando todos sabemos que morreram. E, se nos passearmos pelo mundo do calão, os eufemismos abundam e superabundam até mais não querermos.

Se bem me lembro (Ó belo tempo de Vitorino Nemésio!) foi o Dr Mário Soares, quando exercia o múnus presidencial que proclamou em seu discurso, numa das aberturas de ano judicial, a legitimidade do direito à indignação. Na ocasião, apesar do “meu latinório”, não atinei que “indignado” é aquele que alguém tornou indigno, como explica, e bem, a aludida articulista. Só que vou acrescentar que, se algum malandro pretende criar-me condições para me fazer indigno, eu resisto, praguejo e disponho-me a dar-lhe o respetivo troco, porque “a minha dignidade ninguém a belisca”. Pela rejeição da situação em que me queiram envolver de indignado eu poderei reforçar a minha condição de ser digno em razão e consequência da minha “humanitas”. Porém, lamentável será o caso de eu próprio vir cavar a minha própria indignidade. Aí, não será fácil o meu levantamento do chão.

Podem os moralistas virem a apontar o dedo porque estaria a pagar os resultados de pecado em que eu ou os meus antepassados incorrêramos, à boa maneira veterotestamentária (se não foi ele quem pecou, foram os pais) ou à laia do que o lobo dizia ao cordeiro: se não foste tu quem conspurcou a água foi o teu pai. Não digo que não tenham razão nalgum ponto do moralismo, no caso de me atribuírem, e só a mim, a responsabilidade dos meus atos, mas somente dos meus. Porém, eu posso ingressar no regime de indignidade se acusar em demasia os outros por tudo quanto acontece de mal, sem me interrogar até que ponto eu também terei o meu quinhão de responsabilidade pelas situações de injustiça, iniquidade e obscurantismo. E posso entrar no fosso da autoindignidade se me calo a tudo, se aceito tudo de forma acrítica, em nome da inevitabilidade: os cortes de salário e pensão; a subida calamitosa de preços; a onda de indisposição intergeracional; o ambiente de delação; a ameaça de desconforto, precariedade ou perda de emprego em compensação pela ousadia de erguer a voz contra os desmandos económicos, financeiros e políticos; a usura e agiotagem do capital sem rosto e ameaçador; a observância da disciplina partidária em questões de consciência; a subserviência política, laboral ou empresarial para obter ou manter o lugar vistoso (ainda que inútil) na pantalha da decisão. E pior ainda se, para lá da sujeição acrítica e interesseira, me disponho à desfaçatez da propaganda do sistema do empobrecimento generalizado e crescente, alegadamente porque o país gastara mais do que devia e podia e os credores têm direito ao ressarcimento de quanto generosamente emprestaram à perdulária República, que, pelos vistos, de tudo se deixou esbulhar alegremente e agora se sente orientada para o paraíso perdido do mar – sem marinha mercante, pesqueira e de guerra – na floresta que todos os anos arde ou no ar de quem venderam a ANA e querem vender a TAP!

É óbvio que, neste ambiente de degradação global, a austeridade deixa de ser a marca da gravidade ou da frugalidade para passar piedeticamente a caraterizar o empobrecimento até à miséria final, enquanto uns poucos se regalam à mesa do orçamento – tudo em nome do futuro de progresso, mas com um presente onde somente se percepciona o incómodo sem qualquer alívio.

Perante esta situação não vale a política do embalamento, do registo das inverdades por mentiras, dos cortes por roubos, dos regimes transitórios por regimes de espera sem fim.

Neste contexto, há que agitar a malta, há que animar a malta, cultivar a esperança e desencadear o processo de mudança, mobilizando tudo e todos!

Pro dignitate.

Limitação da intervenção política

27-01-2014 01:19

Limitação da intervenção política

É tema glosado no editorial do Diário de Notícias, de 26 de janeiro a propósito da questão que está na mesa da discussão nas conferências Novo Rumo, do PS. E o editorialista até concede que a intenção seja boa, podendo mesmo “assentar no desejo de valorizar o Parlamento e as listas partidárias, convocando para a casa da democracia os melhores entre os melhores”. No entanto, opina – e bem, a meu ver – que “a introdução deste constrangimento tem potencial para produzir o efeito contrário”, citando exemplos de personalidades que, por esta via, teriam sido arredadas da oferta de uma mais-valia própria à governança (embora se possa discordar politicamente da sua qualidade), só porque não tinham sido eleitas. E pergunta-se “se a democracia e o Estado têm alguma coisa a ganhar em excluir dos mais altos cargos de gestão pública aqueles que são inegavelmente os melhores”, mas que, por razões de feitio ou até orgulho, não se expõem ao voto do povo ou, como diria alguém da nossa anterior praça política, não se dispõem a depender do favor popular.

Porém, a questão torna-se curiosa se pensarmos naquele repto voluntário ou imponderado de uma deputada ao então ministro Gaspar “o senhor Ministro foi eleito…”, a que o atingido respondeu irritadíssimo que “eu não fui eleito coisíssima nenhuma!”.

Ora o sistema francês tem por hábito indicar para membro do governo somente quem faça parte do painel dos efetivamente eleitos deputados à Assembleia Nacional e não usa retirar-lhes o título após a cessação de funções governativas. Contudo, conquanto a França tenha servido de fonte de inspiração para muitas opções políticas, nem sempre a sua sequência se apresentou imune aos efeitos perversos. Em democracia representativa, com a diversidade de poderes separados, embora interdependentes, aquele órgão de soberania que deriva diretamente do voto popular é o Parlamento, que, entre nós, se designa por Assembleia da República (AR), nos termos constitucionais (cf CRP, art.os 147.º-155.º). Já o governo é um órgão de soberania constituído pelo primeiro-ministro nomeado pelo Presidente da República, “ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” (CRP, art.º 187.º/1) “e por ministros e secretários e subsecretários de estado” (CRP, art.º 183.º/1) nomeados “pelo Presidente da República sob proposta do primeiro-ministro” (CRP, art.º 187.º/2). Em tese, tal disposição constitucional nem sequer vincula o Presidente a que a nomeação de primeiro-ministro recaia no líder do partido mais votado, o que habitualmente se faz sob pena de o programa do governo poder vir a ser mais facilmente rejeitado na AR.

Entre nós e na França, o Presidente “é eleito por sufrágio universal, direto e secreto” (CRP art.º 121/1), o que não acontecia na Primeira República, que era eleito e destituído pelo Parlamento; e não sucede na Alemanha, na Itália e outros países, em que a eleição é feita por um colégio eleitoral, em que pontifica o Parlamento, e nos Estados Unidos, em que a eleição compete aos grandes eleitores, podendo acontecer que lá o candidato com maior número de votos não obtenha a presidência.

Quanto ao poder judicial, há que recordar que os juízes são recrutados por concurso, sendo dos do Tribunal Constitucional “dez designados pela Assembleia da República e três cooptados por estes” (CRP art.º 222º/1).

Ora a legitimidade do exercício dos poderes resulta não duma fonte privilegiada em especial, mas da observância do estabelecido constitucionalmente (o que de si já emerge originariamente do processo democrático, que leva à eleição da Assembleia Constituinte, que, por seu turno, determina quando e como é que a AR pode assumir poderes constituintes (vd CRP art.os 284.º-289). Ao assunto, a nossa Constituição estabeleceu diferentes fontes de legitimidade: a da eleição direta (caso do Presidente e da Assembleia); a da eleição indireta (caso, por exemplo do Tribunal Constitucional); a nomeação por múltiplas formas (pelo Presidente, pelo Presidente sob proposta do governo ou equivalente, pelo governo, por membro do governo…); e o concurso (caso dos juízes e o dos diversos lugares na administração pública). E não vejo que se possa, à partida, considerar qualquer delas não democrática, a não ser que os normativos constitucionais ou legais não sejam escrupulosamente observados – quod hic et nunc esset demonstrandum.

Mas, voltando à questão do deputado e do membro do governo, a CRP limita-se a estabelecer, no art.º 154.º, o patamar mínimo das incompatibilidades e impedimentos, estatuindo que “os deputados que forem nomeados membros do governo não podem exercer o mandato até à cessação destas funções”, sendo substituídos nos termos constitucionais; e remete para a lei a determinação das demais incompatibilidades bem como dos impedimentos.

Do meu ponto de vista, cercear em demasia o recrutamento pode levar a efeitos negativos. O papel do Parlamento é fundamentalmente político e traduz-se na produção legislativa, por iniciativa dos deputados (projeto), do governo (proposta) ou de grupos de cidadãos (petição), a passar por profunda e ampla discussão política, baseada essencialmente nas opções de Estado; e na fiscalização política e crítica da atividade governativa, através do debate no plenário, da audição em sede de comissão, da apreciação parlamentar de decretos-lei (para ratificação, alteração ou rejeição) e de requerimentos ao governo para esclarecimento. Além disso, advém ao deputado o trabalho político no círculo eleitoral por que foi eleito e o trabalho de representação em grupos de interesse parlamentar de âmbito nacional ou internacional. Em função de tudo isto, não pode o eleito descurar os aspetos de ordem técnica a fornecer pelos assessores e pelos diversos departamentos governamentais.

Donde se infere que o deputado deve assumir-se, antes de mais, como um tribuno, que perceba as realidades, use proficientemente do poder da palavra para persuadir, sistematizar e apresentar ou em grupo de trabalho/comissão ou em plenário. Subestimo o desempenho dos deputados mudos ou eclipsados, que se limitem ao ofício de corpo presente, levantando o braço em obediência à disciplina partidária ou excecionalmente a explicar as mudanças de posição política – da oposição para o apoio ao governo e vice-versa. A título de exemplo, menciono: o caso do deputado que foi “vocacionado” para explicar ao país a mudança de opinião relativamente à avaliação de desempenho dos docentes, maléfica no tempo de Sócrates e boa no de Passos Coelho; ou a prova de avaliação de competências e conhecimentos para ingresso na carreira docente, plausível antes e má agora.

Quanto aos membros do governo, quero afirmar que, sem perderem de vista a vertente política, já que de poder político se trata e eles respondem politicamente perante o poder legislativo (e não o contrário, como por vezes parece!), a sua atuação reveste-se de uma complexa natureza técnica e administrativa. Assim, eu não posso exigir ao ministro, ou a quem as suas vezes faça, dotes de tribuno, mas a capacidade técnico-política e a postura correta perante o povo e o parlamento, na certeza de que, se ao governo compete a orientação da política geral do Estado e a superintendência na administração pública, destas dimensões deve, com humildade democrática e transparência, aliada à firmeza de quem sabe o que faz, prestar contas ao Parlamento, que deve proferir o seu juízo consciente e crítico. E não deve passar o mandato governativo a “espingardar” contra os deputados ou a carpir-se do ativismo político do Tribunal de Constitucional. De resto, o tecnicismo costuma ter consequências humanas nefastas. Mas não é por acaso que a proposta de lei, do governo, deve ser instruída com uma detalhada exposição de motivos e o pedido de autorização legislativa já deve ser também acompanhado do esquisso do respetivo projeto de decreto-lei (é a componente técnica, senhores!), ao passo que o projeto não tem necessariamente de possuir um preâmbulo. De igual modo, o Parlamento não pode apreciar (pode apresentar uma visão crítica) um decreto regulamentar, uma portaria ou um despacho nem tomar a iniciativa de projeto de uma lei do orçamento ou de natureza similar (não são da sua competência as dimensões estritamente técnicas e administrativas). Não será, pois, difícil de aceitar que um cidadão com enorme competência tribunícia possa não ter um mínimo de competências técnico-governativas; e não basta a boa vontade! Também não será fácil admitir que um técnico supercompetente tenha necessariamente de possuir suficientes competências tribunícias e de trabalho político no terreno. E o país não pode deixar de ser representado com o elevado sentido de Estado.

Enfim, quem representa o povo são os eleitos e não os governantes por si mesmos.

E não vale a pena andar a anatematizar, por si só, alguma coexistência de acumulação das funções de deputado com outras, desde que devidamente declaradas e não incompatíveis. Ao invés da exclusão às vezes propalada, aliciem-se os cidadãos competentes para a exclusividade parlamentar com um vencimento um pouco melhor, próximo do rendimento auferido na atividade profissional de origem, quiçá à custa de alguma redução do número de deputados, e acabe-se com a promiscuidade de interesses parlamentares e empresariais (por exemplo, de quem no Parlamento colabora na produção legislativa a contento do que pretende realizar no departamento profissional e empresarial de origem ou de concomitância, por si ou por outrem).

Não é em vão que se exige cada vez mais aos partidos ampla e profunda reforma para se abrirem à sociedade, abandonando de vez o aparelhismo e não se cingirem ao recrutamento de deputados e governantes nas “jotas”. Também, no aspeto da formação política, as fontes devem ser múltiplas: a académica diversificada (não sendo de privilegiar ou excluir esta ou aquela), a experiência profissional (laboral e empresarial), a formação em quadros partidários e o autodidatismo (tudo sem abusar das equivalências!).

Efetivamente, se os partidos pretendem uma verdadeira reforma do sistema político, devem proceder à necessária redefinição dos círculos eleitorais, de modo que os deputados eleitos apostem na proveniência e na proximidade dos seus eleitores, bem como na responsabilidade perante os mesmos, sem perderem de vista o todo nacional. Mas devem outrossim reforçar a capacidade de agregação e inclusão. Não sei se lá vão somente com “universidades de verão” “estados gerais”, “novas fronteiras”, “laboratório de ideias”, “novo rumo”!

Paulo de Tarso

26-01-2014 13:53

Paulo de Tarso

Passa a 25 de janeiro a comemoração da Conversão de S. Paulo, figura de apóstolo incontornável no mundo do Cristianismo, efeméride que assinala o términus da Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos nas comunidades do hemisfério norte, há mais de 100 anos.

Porque é que tal personagem se torna tão marcante na História da Igreja? É exatamente pela reviravolta que se deu na sua vida quando, na célebre viagem a Damasco com vista ao encarceramento dos discípulos de Cristo, lhe aparece numa luminosa visão o Mestre que o interpela “Porque me persegues?”. Ao que ele responde com a pergunta “Quem és tu, afinal?”. E, levado para a cidade, ali permaneceu durante três dias, cego, sem comer nem beber.

Quem era este homem fogoso?

Saulos, judeu de nascimento, viu a luz do dia em Tarso, capital da Cilícia, onde estudou as ciências e artes gregas, que ali eram ensinadas tal como em Alexandria e Atenas; e, porque aquela região se tornou um município romano, graças à sua declaração sucessivamente em favor de Júlio César e Augusto, este judeu tinha o estatuto de cidadão romano, usando como tal o nome latino de Paulus em contraposição ao nome grego Saulos.

Dotado de muito engenho e amor ao estudo, os pais cedo o enviaram para Jerusalém, onde cursou a escola rabínica de Gamaliel; aí aprendeu tudo o atinente à religião, costumes e cerimónias dos judeus e se fez um dos fariseus mais denodados na defesa da Thorá, Salmos e Profetas. Assim, quando surgiu o grupo dos “santos” (mais tarde em Antioquia assumiram o designativo de “cristãos”) e se espalhou pelas comunidades da diáspora hebraica, Paulo aparece como campeão do combate àquela nova “seita”, que estava a alastrar por todo o mundo conhecido e que, pela contestação que estava a desencadear contra a Lei, era imperioso jugular. E capitalizava cada vez mais resultados.

Consta dos Atos dos Apóstolos, que guardara as capas dos lapidadores do primeiro mártir, Estêvão, pelo facto de ainda não ter idade para participar na aplicação da pena capital judaica.

Porém, a viagem a Damasco munido de credenciais do Sumo Sacerdote para prender todos os seguidores de Cristo que encontrasse determinou o volte-face total. Recebeu então o batismo das mãos de Ananias ali mandado por uma visão divina, recuperando o recém-batizado do estado de cegueira e transformando-se num aguerrido apóstolo, já não do judaísmo mas da nova Religião, de que, embora em sintonia de fé com Pedro, se encarregou da missionação por todo o território abrangido pela romanização. E chegou a Roma, depois de criar comunidades eclesiais por todo o lado e as amparar, primeiro presencialmente e, depois através das epístolas ou cartas.

É de notar que a viagem a Roma resulta da invocação do estatuto de cidadão romano, o que, frente à tentativa da autoridade local de o condenar, lançou mão do direito de apelação para César – o que não podia ser recusado. A viagem constituiu a oportunidade de oiro para a missionação, dado o seu propositado caráter ziguezagueante e penetrante por todos os meandros da diáspora judaica.

Em Roma, o apóstolo não fundou aí a Igreja, que já lá estava estabelecida e a quem dirigira antes uma epístola, mas deu-lhe um forte incremento. Teve, no entanto, o seu fim torpedeado pela perseguição. E foi da prisão que ele emitiu os seus grandes ensinamentos e admoestações. Mas, quando a autoridade imperial o não quis mais suportar e se preparava para decretar a pena capital da crucifixão, o estatuto de cidadão romano gritou mais alto. E a pena foi comutada pela de decapitação.

Eusébio de Cesareia, que escreveu no século IV d.C., afirma que Paulo foi decapitado sob a égide de Nero. Este evento tem sido datado ou do ano de 64 d.C., quando Roma foi devastada por um incêndio, ou alguns anos depois, em 67 d.C.

Que desígnio passa a comandar a vida e atuação deste apóstolo das gentes?

Paulo é indicado a Ananias como instrumento de eleição do Senhor para levar o Seu nome perante os pagãos, os reis e os filhos de Israel (cf Act 9,15). A si próprio se designa como servo de Cristo, chamado a ser Apóstolo de Cristo de Jesus pela vontade de Deus junto de todos os gentios (cf Rm 1,1-5; 1Cor 1,1), não pela vontade dos homens (cf Gl1,1). E vive da consciência clara do mandato divino: “Estabeleci-te como luz das nações, para levares a salvação até aos confins da Terra” (Act 13,47).

Que se espera hoje em torno deste apóstolo?

Ora a um apóstolo que verbera a divisão gritante entre os Coríntios como se Cristo estivera dividido seria conveniente que os cristãos de hoje separados por diferenças históricas, diga-se mais acessórias na origem que essenciais, se voltassem para o cerne evangélico e resolvessem permanecer sob o mesmo teto e a gerir sabiamente as divergências, como sugere o irmão Alois, superior de Taizé.

E o papa Francisco, depois de ter afirmado que as divisões na Igreja não podem ser consideradas como “fenómeno natural ou inevitável”, mas um “escândalo” para os cristãos, exclamou numa celebração ecuménica na Basílica de São Paulo Extra Muros:

“Queridos amigos, Cristo não pode estar dividido! Esta certeza deve incentivar-nos e suster-nos a continuar, com humildade e confiança, o caminho para o restabelecimento da plena unidade visível entre todos os crentes em Cristo”.

Porém, Francisco adverte que “a unidade não vai cair do céu como um milagre, mas será o Espírito Santo a propiciá-la, em nosso caminho”; e avisa que, “se não caminharmos juntos, uns para os outros, e não trabalharmos juntos, a unidade não virá”; por fim, conclui que “é o Espírito Santo que a faz [a unidade], ao ver a nossa boa vontade”.

O papel da comunicação Social

25-01-2014 16:59

O papel da comunicação Social

Em tempo, a propósito da memória litúrgica de S. Francisco de Sales, resolvi apresentar a reflexão, que passo agora a concretizar, sobre o papel da comunicação social, que integra a imprensa, desde há muito considerada o 4.º poder, terminando com um apontamento indiciador do empenho católico nesta área.

Ao estudarmos as funções de qualquer sistema comunicacional, temos de o relacionar com o sistema social e cultural em que está inserido e de com ele o pôr em interação. Assim, as funções dos meios de comunicação de massas terão diferentes conceções e desempenhos em país oriental, em contraponto com país ocidental, em país do norte ou do sul, em país capitalista ou em país dito socialista.

Tradicionalmente têm-se atribuído aos meios de comunicação social as funções de informar, entreter e educar. Segundo a conceção subjacente a esta trilogia, informar envolve a comunicação dos factos que ocorrem nos diversos contextos; educar ou formar, a orientação da capacidade que tem o homem para se defrontar com estes contextos, cabendo aqui todo o dinamismo da publicidade, seja ela institucional ou comercial, assuma ela os foros de propaganda combativa; e entreter ou divertir, o transporte mental e transitório do espectador para fora do seu contexto habitual, objetivando-lhe reparador descanso e distensão catártica. O próprio ato de comunicar pode ser já de si fonte e momento de prazer.

Por mais que se diga que a mais importante é a função de informar, correspondente ao direito basilar de informar e ser informado, ninguém acredita que os grandes homens do catolicismo, como Tiago Alberione, construtor da família paulista, e partidos políticos ou grupos económicos e financeiros tenham como principal objetivo prestar informação. Não, o seu desígnio é formar, educar, conduzir, influenciar – o que, por legítimo que seja, não pode ser incompatível com o respeito pela liberdade de aceitar ou de não aceitar ou com a abertura a diversas formulações. Por outro lado, o profissional da comunicação sabe que todo o ato comunicacional decorre sempre num contexto específico, que pode não ser o do seu putativo recetor, e comporta necessariamente uma intencionalidade comunicativa, que – queiramo-lo ou não – modula ou condiciona a prestação da informação, em termos quantitativos e qualitativos. Isto, para não falarmos do condicionamento da informação operacionalizado pela censura política ou empresarial, que tantas vezes ameaça com o desconforto, precariedade ou, mesmo, perda do emprego. Não é, com efeito, despropositada a exigência legal de cada periódico definir e publicitar o seu estatuto editorial, mas é deplorável tanto a proliferação da hipócrita declaração de periódico “independente” como a multiplicidade de formas encontradas pelos poderes para silenciar vozes incómodas, como o agravamento do custo de materiais, pressões, oneração fiscal, limitação de circulação, aquisição forçada, etc.

Ora, o papel de informar com a objetividade possível (que também se aprende diariamente), para observação do direito fundamental atinente a esta vertente, é o mínimo patamar exigível a todos. E, além disso, exige-se a plataforma ética que minore os abusos tentadoramente concomitantes às outras funções.

Por seu turno, Harold Laswell, cientista político norte-americano, na convicção de que a comunicação social não tem uma feição anódina, por mais que, por hipótese, se defenda consensualmente que a principal função é a informativa, enunciou, em termos sintéticos, as funções dos meios de comunicação nos seguintes termos, que seguiremos de perto: vigilância do contexto; correlação social; transmissão cultural; socialização; e entretenimento.

A vigilância do contexto faz dos meios de comunicação de massas sentinela dos indivíduos ou “janela do mundo”, na expressão de Marshall McLuhan, alertando-os para os factos que se sucedem ao seu redor. Assim, tal função configura o importante papel de moralização dos indivíduos, de reforço das normas sociais e de advertência para os perigos que impendem sobre o grupo integram, como a possibilidade de guerra, a queda da moeda e outros fatores que interfiram no dia a dia ou eventualmente na mudança radical de vida.

A correlação com o contexto social inclui a interpretação da informação relativa ao meio ambiente e as prescrições de conduta em reação aos acontecimentos transmitidos. Deste modo, facultando a propagação de opiniões sobre os factos ocorridos, expressa-se em editoriais ou em programas de opinião, na imprensa, rádio, televisão e redes sociais. Nestes termos, os meios de comunicação funcionam como aquela mesa redonda em que todos os intervenientes têm a possibilidade de debater os assuntos públicos e até de os poder alterar.

A transmissão cultural, por sua vez, implica a preservação da herança cultural da sociedade, ainda que, em muitos dos casos, a degrade. Antes da generalização destes meios, este papel cabia aos pais ou a membros mais velhos da comunidade, através da palavra ao serão ou em reuniões, trabalhos e festas. Hoje, como refere Harold Laswell, os pais “não conseguem transmitir aos filhos a sua carga cultural no singelo contar de uma história, visto que julgam que a televisão tem mais conteúdos e facilidades para bem ensinar, ficando os progenitores na cómoda posição de cúmplices.

Em consequência do fator cultural, vem a socialização que leva os membros de uma coletividade à aprendizagem dos modelos da sua sociedade, assimilando-os e convertendo-os em suas próprias regras pessoais conduta. Os meios de comunicação geralmente cumprem este processo de socialização, de maneira não formal, mas pela promoção de valores e de sistemas de vida, especialmente nas áreas do entretenimento, e que comportam a disseminação da ideologia das elites do poder ou das tendências socioeconómicas predominantes, em detrimento ou degradação dos valores da própria sociedade.

Já o papel de entretenimento, destinado a distrair as pessoas, está ligado ao cultivo belo e à apresentação estética, o que se transforma em fenómeno espetacular sobretudo nas produções televisivas. Até mesmo os programas meramente jornalísticos se transmutam em verdadeiros shows da vida e tornam muitas vezes o irreal bem patente à vista do público.

No entanto, são inúmeras as disfunções dos meios de comunicação de massa no trânsito e tratamento das informações junto do público, que é necessário ter na devida conta.

Entre elas, pontificam a manipulação e orientação ideológicas, o isolamento do indivíduo em relação ao grupo, a quebra e substituição de valores morais, sociais e culturais, bem como a fuga da realidade para uma ilusão que se visualiza e a que se aspira, mas que jamais poderá ser alcançada. Ainda para mais, as pessoas correm sério risco de ser reduzidas à condição de simples consumidores ou de mero número para pesquisa.

São vários os malefícios proporcionados por sistemas de comunicação em que um grupo – político ou empresarial – dita as normas com finalidades subtis de persuasão e condução da opinião pública, com vista à feroz conquista ou persistente manutenção da hegemonia. Torna-se, portanto, imperativa a necessidade de se democratizar o acesso às técnicas de produção, bem como a popularização dos sistemas de difusão, evitando a feroz apetência de controlo da comunicação social por parte do neocapital sem rosto – gerador de uma socialização cada vez mais unidirecional, manipuladora, massificante e transnacional – e criador do fosso profundo cavado entre o número cada vez menor dos cada vez mais ricos e o cada vez maior número dos cada vez mais pobres.

Diante deste quadro surge o conceito da comunicação participativa, que serve para enfrentar a comunicação massiva totalitária e que apresenta as seguintes caraterísticas: respeito pelo direito de acesso à informação, emergindo da condição de marginalização, que os afeta particularmente, os mais pobres e iletrados; exercício efetivo do direito a emissão de mensagens, onde pessoas e grupos populares, sem vez e sem voz, podem autoexpressar-se; exercício efetivo do direito ao diálogo, nos termos do artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estatui o direito de todos à liberdade de opinião e de expressão; oferta de programas interativos e criação do provedor do recetor (leitor, ouvinte ou telespectador); vinculação da atividade de comunicação a outras iniciativas de ação social, política e cultural em resposta a problemas concretos, pequenos ou grandes; a promoção da comunicação alternativa, que efetivamente se contrapõe à comunicação controlada pelos poderes e que de forma sustentável provê aos interesses de quem não tem usual acesso aos centros de decisão; e a luz verde à comunicação popular, da iniciativa das organizações populares de base – que são todas as formas de mobilização e de organização de pessoas das classes populares, direta ou indiretamente ligadas ao processo produtivo, tanto urbanas como suburbanas e rurais.

A isto, o Concílio Vaticano II responde com o decreto Inter Mirifica, em que, salientando a importância destes meios e alertando para os perigos humanos e sociais de sua má utilização, estabelece um conjunto de deveres respeitantes aos seus operadores e destinatários, aos poderes públicos e à própria Igreja, de que se destaca a formação das consciências, a atenção e a responsabilidade dos técnicos de comunicação e a disciplina dos utilizadores. Leiamos, a título de exemplo, o seguinte excerto:

“Para o reto uso destes meios, é necessário que todos conheçam e pratiquem fielmente, neste campo, as normas morais. Considerem, pois, as matérias que através deles se difundem, segundo a natureza peculiar de cada um; tenham simultaneamente em conta as circunstâncias ou condições, isto é, o fim, as pessoas, o lugar, o tempo e outros fatores de realização da comunicação, que podem mudar ou alterar totalmente sua bondade moral; entre estas circunstâncias se conta o caráter específico de atuação de cada meio, nomeadamente a sua própria força, que pode ser tão grande que os homens, se não estão prevenidos, dificilmente serão capazes de a descobrir, dominar e, se se der o caso, a pôr de lado.”

Em 27 de maio de 1971, a pontifícia instrução pastoral Communio et Progressio, que define “a comunhão e o progresso da convivência humana como fins primordiais da comunicação social e dos meios que emprega”, refere no seu n.º 16:

“A apreciação global dos diversos meios, num lugar determinado, deve ser feita segundo o contributo que prestam ao bem comum, isto é, se pela qualidade da informação e emissões culturais ou recreativas, contribuem para a vida e progresso da sociedade. As notícias transmitidas, por exemplo, deverão constar não tanto de acontecimentos brutos e como que tirados do contexto, mas de acontecimentos de tal modo situados que os destinatários possam cair bem na conta dos problemas da sociedade, e assim possam trabalhar para a sua solução. Por outro lado, deve ser mantida reta proporção, não só entre notícias oficiais, instruções escolares e divertimentos, mas também entre formas mais ligeiras ou mais sérias de ocupar o tempo livre.”

Mais documentos vêm atestando o empenho da Igreja Católica nesta área, a par da criação do Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais e da instituição do Dia Mundial das Comunicações Sociais.

Finalmente, das declarações pontifícias sobressai a mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, no próximo 1 de junho, sob o tema comunicação ao serviço de uma autêntica cultura do encontro, que atribui a estes meios de comunicação um momentoso papel no devir humano:

 “Os mass-media podem ajudar a sentir-nos mais próximo uns dos outros; a fazer-nos perceber um renovado sentido de unidade da família humana, que impele à solidariedade e a um compromisso sério para uma vida mais digna. Uma boa comunicação ajuda-nos a estar mais perto e a conhecer-nos melhor entre nós, a ser mais unidos.”.

Enfim, comunicar é viver, é transmitir vida e promover vida.

S. Francisco de Sales

24-01-2014 21:29

S. Francisco de Sales

Celebra-se hoje, 24 de janeiro, a memória litúrgica de S. Francisco de Sales, que o papa Pio XI proclamou padroeiro dos jornalistas e escritores católicos, em 1923, e que Pio IX proclamara Doutor da Igreja, em 1867. A efeméride leva-me a breve resenha sobre a sua vida e atividade, bem como a reflexão sobre o papel da comunicação social, que integra a imprensa, desde há muito considerada o quarto poder. Passemos agora à primeira, deixando para depois a segunda.

Primogénito dos 13 filhos dos Barões de Boisy, Francisco nasceu no castelo de Sales, em Thorens, na Saboia, a 21 de agosto de 1567. Por devoção a S. Francisco de Assis, a família escolheu-o para protetor do menino, que posteriormente o assumiu como modelo. Encarregado da sua educação pela mãe, o precetor padre Deage acompanhou-o até que faleceu, em Paris, onde o jovem, no Colégio de Clermont, dos jesuítas, fez os estudos universitários de retórica, filosofia e teologia. Passou, mais tarde, para a Universidade de Pádua, na Itália, onde se fez doutor em direito civil e canónico, aos 24 anos de idade. 

Envolvido em indizível labor apostólico, o grande teólogo, pregador, polemista e diretor espiritual – herdeiro direto do nome e da tradição da família – não descurara as lições de esgrima, dança e equitação, em complemento da sua apurada formação. Porém, sentindo-se chamado a servir inteiramente a Deus, fez voto de castidade, colocando-se sob a proteção da Virgem Maria, contrariando as pretensões do pai que lhe havia escolhido noiva nobre e rica e o lugar de senador. 

Iniciou a carreira eclesiástica como capelão da catedral de Chamberi, mas cedo se ocupou da evangelização de Chablais, cidade das margens do lago de Genebra, para o que divulgava folhetos de refutação das heresias em voga, contrapondo-lhes apologeticamente as verdades católicas, vindo a obter a recondução ao seio do Catolicismo milhares de seguidores da doutrina calvinista.

Em 1599, foi nomeado Bispo auxiliar da diocese de Genebra, cuja titularidade assumiu três anos depois e onde fundou escolas, ensinou catecismo a crianças e adultos, dirigiu e conduziu à santidade grandes almas da nobreza, que tiveram papel preponderante na reforma religiosa então empreendida, e conseguiu a reconciliação de diversas personalidades em diversos estratos sociais e políticos. E com a madre Joana de Chantal, depois santa, fundou da Ordem da Visitação de Maria, em 1610. E foi a persistência de uma das suas religiosas, a madre Maria de Sales Chappuis, 250 anos mais tarde, que levou o padre Luís Brisson a fundar a obra dos Oblatos de S. Francisco de Sales e, depois, o seu ramo feminino.

Além dos referidos folhetos, dos quais um lhe pôs a vida em risco e que constituíram os seus escritos Em defesa da fé, publicou, a Filoteia ou Introdução à vida devota, que o papa Alexandre VII designou por livro de oiro, o livro que se tornaria imortal, e escreveu para suas filhas da Visitação o Tratado do Amor de Deus, onde glosou o lema: "a medida de amar a Deus é amá-lo sem medida". A sua obra escrita totalizou 50 volumes.

Francisco faleceu no dia 28 de dezembro de 1622, em Lion, França. E da sua santidade não restavam quaisquer dúvidas para os seus contemporâneos, nomeadamente Santa Joana de Chantal e S. Vicente de Paulo, dos quais fora diretor espiritual. No próprio momento de sua morte começou o culto do Santo, cuja memória é celebrada a 24 de janeiro porque, nesse dia de 1623, as suas relíquias mortais foram trasladadas para a sepultura definitiva em Annecy, na igreja da Visitação. D. Bosco admirava-o tanto que deu o nome de Congregação Salesiana à obra que fundou para a educação dos jovens.

A sua beatificação, em 1661, foi a primeira a ocorrer na basílica de São Pedro em Roma, tendo a sua canonização sido feita pelo papa Alexandre VII, quatro anos depois.

Dele escreveu Paulo VI, na carta apostólica Sabaudiae Gemma, em comemoração do IV centenário do nascimento de Francisco, pérola da Saboia e da Suíça:

“Nenhum dos doutores da Igreja, mais do que S. Francisco de Sales preparou as deliberações e decisões do Concílio Vaticano II com uma visão tão perspicaz e progressista. Ele oferece a sua contribuição pelo exemplo da sua vida, pela riqueza da sua verdadeira e sólida doutrina, por ter aberto e reforçado as veredas da perfeição cristã para todos os estados e condições de vida. Propomos que essas três coisas sejam imitadas, acolhidas e seguidas.”.

E Bento XVI, na audiência geral de 2 de março de 2011, não se inibe de afirmar:

“… num período como o nosso que procura a liberdade, mesmo com violência e inquietação, não deve passar despercebida a atualidade deste grande mestre de espiritualidade e de paz, que transmite aos seus discípulos o ‘espírito de liberdade’, aquela verdadeira, no ápice de um ensinamento fascinante e completo sobre a realidade do amor. São Francisco de Sales é uma testemunha exemplar do humanismo cristão; com o seu estilo familiar, com parábolas que às vezes têm as asas da poesia, recorda que o homem traz inscrita no profundo de si mesmo a saudade de Deus, e que somente nele encontra a alegria autêntica e a sua realização mais completa.”.

Efetivamente, nos tempos do presente, marcados pela dúvida e incerteza, por inúmeros atropelos às liberdades e, sobretudo, pela falta de atração pela verdade, é vantajosa a reflexão junto dos que se nos apresentam como exemplos de firmeza dialogante, ensinamento fascinante, mas não falacioso, e auscultadores da realidade a transformar segundo os paradigmas da justiça e da paz, da equidade e do pundonor, da inclusão e reconciliação.

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