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A sucessão apostólica − Essência e cambiantes

12-02-2014 21:30

A sucessão apostólica − Essência e cambiantes

Por sucessão apostólica entende-se a convicção de que os 12 apóstolos projetaram prospetivamente sua autoridade e ministério nos legítimos sucessores, os quais, por sua vez, o fizeram do mesmo modo em relação a outros, alargando-se progressivamente o círculo sucessório e mantendo-se ininterruptamente a cadeia da sucessão in saecula. Os apóstolos fundavam comunidades eclesiais, entregavam-nas ao cuidado pastoral de outrem e, quando elas tinham força para andar por si, partiam para outra, continuando a sua animação por carta e/ou visita. Seria de seguir hoje este exemplo – nem colagem perpétua a uma igreja local nem abandono; não itinerância total, mas solicitude solidária.

Simão Pedro, constituído como a rocha sobre a qual Cristo alicerça a Igreja (super hanc petram – Mt 16,18), é encarregado de “confirmar os irmãos na fé” (cf Lc,22,32) e recebe a especial missão de apascentar os cordeiros e as ovelhas do Senhor (cf Jo 21,15-23). Por isso, a Igreja Católica vê Pedro como o líder dos apóstolos, com a maior autoridade e serviço, recebendo, portanto, os seus sucessores essa maior autoridade apostólica e uma peculiar diaconia. Até à reforma quinhentista, nenhuma das Igrejas locais duvidava dessa autoridade e desse ministério petrino, só que progressivamente os patriarcas das outras igrejas começaram a considerar o bispo de Roma como o detentor do mero primado de honra, um primus inter pares, ao que Roma veio a contrapor o primado dogmático. Não se põe em causa, em termos católicos, a questão do primado de Pedro e legítimos sucessores como sendo de direito divino. A questão que fica em aberto é se o sucessor de Pedro tem de ser mesmo o bispo de Roma, por direito divino, ou se o é com base na tradição que remonta ao momento em que Simão ocupava a cátedra de Roma com aquela desenvoltura ora resoluta ora eventualmente receosa (não revestido com o aparato plasmado nos quadros de Grão Vasco), devendo aceitar-se o facto que a tradição histórica deu por consumado. Ou seja, a coincidência do primado de Pedro e sucessores com a da pessoa do bispo de Roma poderá em tese ser de direito eclesiástico.

Seja como for, os bispos romanos que se seguiram a Pedro eram aceites pela igreja primitiva como a autoridade central entre todas as outras igrejas, a ponto de ficar célebre o aforismo “Roma locuta, causa finita” (Se Roma falou, fica o assunto encerrado). Assim, a sucessão apostólica, combinada com a supremacia de Pedro entre os apóstolos, resulta no bispo romano como sendo a autoridade suprema da Igreja Católica – o papa.

Não se pode, no entanto, absolutizar a ideia do primado sem mais. A colegialidade é um dado neotestamentário marcante e que a Lumen Gentium, constituição dogmática sobre a Igreja, recupera. Os encontros de Cristo a sós com Pedro e as referências singulares a esta personalidade, embora remetam para momentos significativos, não são frequentes. Pelo contrário, usualmente o Mestre dirige-se a todos os discípulos, a quem explica sobretudo as parábolas, e especialmente aos que escolheu para apóstolos e, de entre estes, havia um escol formado pela tríade Pedro, Tiago e João. É notória a ambição dos dois filhos de Zebedeu (Tiago e João), veiculada pela mãe, da conquista de lugares reservados, um à esquerda e outro à direita de Jesus, aquando do advento do Reino, a que Jesus ripostou condenando o carreirismo (aliás hoje frequente) e esclarecendo que entre os discípulos deve imperar a lógica do serviço contra a lógica do poder. De certo modo, não percebo muito bem porque insistia o venerável arcebispo de Braga, Dom Frei Bartolomeu dos Mártires ao não querer ajoelhar diante dos cardeais, argumentando com o facto de os bispos serem de instituição divina, ao passo que os cardeais são de mera instituição eclesiástica. É caso para pensar se os “cardeais” Pedro, Tiago e João – as testemunhas privilegiadas de momentos íntimos do Messias (considerem-se os episódios do Tabor e do Getsémani) resultam da opção eclesiástica, a menos que se pense que a razoabilidade discursiva do hoje Beato Bartolomeu dos Mártires residia no facto de nem todos os cardeais do Renascimento não possuírem caráter episcopal. Agora me recordo de que foi o papa Beato João XXIII quem decretou que todos os cardeais fossem laureados com a sagração episcopal, aliás conforme tese que vi gravada em Latim num véu de cálice na Universidade de Coimbra.

A reforçar a ideia da colegialidade, é de recordar que o apóstolo Paulo chega a repreender Pedro por ele estar a conduzir os outros de forma errada (Gl 2,11-14) e que o livro dos Atos dos apóstolos reserva papéis proeminentes para Paulo, Barnabé e Tiago, o irmão de Jesus. E, em Roma, a ação de Pedro e a de Paulo têm coincidências temporais, não sendo menos visível a intervenção de Paulo – e ambos lá foram martirizados.

Na bíblia, pode ser considerado como exemplo de sucessão apostólica o facto de, por Judas Iscariotes haver traído Cristo e se suicidar, o seu lugar apostólico ter sido declarado vago pelo apóstolo Pedro, que aponta a necessidade de que alguém o ocupe (Act 1,16-17.21-26). É eleito Matias e, mais tarde, associam progressivamente outros nas funções que lhe foram confiadas, para que continuem o seu ministério. E Paulo, que fora chamado misteriosamente pelo Ressuscitado (cf. Gl 1, 1), confronta o seu Evangelho com o Evangelho dos Doze (cf. ibid. 1, 18), preocupando-se em transmitir o que, por sua vez, recebera (cf. 1 Cor 11, 23; 15, 3-4) e, na distribuição das tarefas e missões, é associado ao colégio apostólico, juntamente com outros, por exemplo Barnabé (cf. Gl 2, 9). Tal como no início da condição de apóstolo há o chamamento e o envio (vocatio et missio) da parte do Cristo ressuscitado, também a sucessiva missão de outros acontecerá na força do Espírito (pareceu-nos nós e ao Espírito Santo – era a clássica fórmula de decisão apostólica), por obra de quem já foi constituído no ministério. Este é o caminho pelo qual continuará o ministério, que, a partir da segunda geração, se chamará ministério episcopal, a que se associa o serviço presbiteral de íntima cooperação com o bispo, sucessor apostólico. Assim, a Igreja Católica acredita e defende que, devido ao sacramento da Ordem, todos os bispos ordenados válida e licitamente (para a validade dos atos por si praticados basta que a ordenação tenha sido válida, mesmo que eventualmente ilícita), em comunhão com o Papa, sucessor de Pedro, são todos sucessores dos apóstolos. Assim, quando morre o Papa ou quando ele renuncia, outro é eleito para o seu cargo, sucedendo-lhe, e, enquanto um bispo válido e legitimamente ordenado (ou consagrado) estiver vivo e em funções, consagra outros bispos e ordena presbíteros e diáconos, dando assim uma continuidade ininterrupta à sucessão apostólica, que é, por isso, a base de toda a hierarquia católica.

Porém, quem produziu uma saborosa catequese sobre a sucessão foi Bento XVI na sua audiência geral de 10 de maio de 2006. Depois de afirmar que, na linha da Tradição da Igreja, enquanto “presença permanente da palavra e da vida de Jesus no seu povo” se exige a reciprocidade palavra e pessoa, sendo a palavra a força de conteúdo a transmitir e a pessoa a testemunha que se sente obrigada a falar, não daquilo que inventa, mas do que viu e ouviu, garante que tal reciprocidade – entre conteúdo da palavra de Deus, a vida do Senhor e a pessoa que lhe dá continuidade – é caraterística da estrutura da Igreja.

Acentuando a condição do bispo como cabeça da Igreja local, à maneira de Jesus – pastor e bispo das nossas almas (cf 2 Ped 2,25) – Bento XVI assegura que a função episcopal evolui, sob a égide do Espírito de Deus, até à formulação inaciana do tríplice patamar (a que corresponde múnus específico) de bispo, presbítero e diácono. Deste modo – garantia o pontífice – a sucessão na função episcopal apresenta-se como continuidade do ministério apostólico, penhor da perseverança na Tradição apostólica, palavra e vida, que o Senhor confiou à Igreja, num vínculo entre o colégio episcopal e a comunidade originária dos Apóstolos compreendido na linha da continuidade histórica. Mas, para lá desta linha, é necessário também perceber o seu sentido espiritual, “porque a sucessão apostólica no ministério é considerada como lugar privilegiado da ação e da transmissão do Espírito Santo”.

Segundo os testemunhos da Igreja antiga, que o alemão pastor evoca, “a apostolicidade da comunhão eclesial consiste na fidelidade ao ensinamento e à prática dos Apóstolos, através dos quais é garantido o vínculo histórico e espiritual da Igreja com Cristo”. Mais: “o que os Apóstolos representam no relacionamento entre o Senhor Jesus e a Igreja das origens, representa-o analogamente a sucessão ministerial no relacionamento entre a Igreja das origens e a Igreja atual”. E não se trata de “uma simples concatenação material; é o instrumento histórico do qual se serve o Espírito para tornar presente o Senhor Jesus, Chefe do seu povo, através de quantos são ordenados para o ministério através da imposição das mãos e da oração dos bispos”.

Finalmente, é de salientar a dupla valorização da sucessão. Em primeiro lugar, vem a apreciação retrospetiva, de que, no geral, todos cuidam. É fácil um bispo surpreender-nos com a referência elogiosa aos antecessores. Os documentos pontifícios estão pejados de recorrentes referências a palavras, gestos e ações dos predecessores, muitas vezes citados pelo próprio nome, não sendo suficiente a menção genérica dos predecessores. Por vezes, a sucessão defronta-se com a responsabilidade sobre uma pesada herança, como foi o caso de Paulo VI, perante a herança projetiva do concílio Vaticano II inaugurado pelo predecessor. E nos grandes momentos lá é invocada a “autoridade apostólica” que fora transmitida e a responsabilidade da guarda do fidei depositum. Porém, não é menos relevante a apreciação e a valorização prospetiva da sucessão (o bispo na ordenação presbiteral solicita a promessa de obediência do ordinando a si e aos seus sucessores!), de que Bento XVI dá exemplar testemunho. Não se limita a referir que o sucessor fará o que entender ou em não lhe criar dificuldades (aqui, remete-se à clausura do silêncio, que prepara com tempo), mas, sem o mostrar, desprende-se voluntariamente das iniciativas encetadas que lhe dariam mais visibilidade (encerramento do Ano da Fé, Jornada Mundial da Juventude, conclusão de encíclica sobre a fé e exortação apostólica na sequência do último sínodo dos bispos), sem nada apressar nem deixar cair e tudo disponibilizando. Ainda entre o anúncio da renúncia e a sua efetivação produziu encontros múltiplos de doutrinação, parénese e humanismo e publicou um documento motu próprio facilitador do conclave, bem como prometeu explicitamente a oração e a obediência e reverência incondicionais ao futuro papa. A sucessão não tem necessariamente de ser precipitada, pode ser, como se viu, solidária, bem preparada e sem designar delfim!

Conselhos municipais de educação

12-02-2014 15:45

Conselhos municipais de educação

Decorreram há dias, nas nossas escolas, atos eleitorais com vista à constituição do Conselho Municipal de Educação de Santa Maria da Feira para novo mandato. É algo de que pouco se tem ouvido falar no país, como seria necessário, mas recordo que, aí pelo ano letivo de 2005/2006, se encheram as bocas de autarcas (inclusivamente a minha) e de figuras públicas ligadas à educação por via da obrigatoriedade da elaboração, aprovação e ratificação das cartas educativas em todos os municípios. Os meus apontamentos registam que a Assembleia Municipal de Sernancelhe realizou sessão extraordinária, em maio daquele ano, para a designação dos elementos que integrariam o conselho municipal de educação, sob proposta da câmara como determina a lei, o qual reuniu em tempo oportuno para emitir parecer unânime sobre a carta educativa elaborada pela Câmara Municipal, nos termos legais, que a colocou em discussão pública, após o que a submeteu à apreciação da Assembleia Municipal, também reunida extraordinariamente a 30 do mesmo mês, que a aprovou por maioria absoluta. De então para cá, apesar de várias vezes ter questionado o executivo no lugar próprio, nunca mais ouvi falar das suas atividades, bem como das similares de órgão homólogo de outros municípios.

Dei-me, entretanto, à curiosidade de algo pesquisar sobre o assunto e percebi que, no município de Santa Maria da Feira, o conselho municipal de educação tem funcionado regularmente no último quadriénio e não descurou as suas responsabilidades, embora tal não haja sido invocado publicamente como suporte das decisões tomadas em matéria educativa. Vi, por exemplo, que a 11 de maio de 2012, como refere a ata da sua 8.ª reunião ordinária, o conselho, perante as propostas de alteração à rede escolar pela senda da agregação de agrupamentos de escolas, apenas a referente ao “Território Milheirós de Poiares e Arrifana obteve a concordância da Autarquia, com a condição de que teria oferta de ensino secundário, integrando todas as estruturas educativas desde o pré-escolar ao 12.º ano e respeitando o princípio da especialização, para evitar sobreposição, no mesmo concelho, entre cursos profissionais e cursos de aprendizagem com as mesmas saídas profissionais” (vd ata referenciada, ponto 4). E os diretores de nada sabiam! – constava.

Depois, entretive-me a compulsar a legislação atinente à matéria e anotei que o art.º 11.º do decreto-lei n.º 75/2008, de 22 de abril, com a redação que lhe foi dada pelo DL n.º 137/2012, de 2 de julho, no seu n.º 1, institui o conselho geral como “órgão de direção estratégica responsável pela definição das linhas orientadoras da atividade da escola, assegurando a participação e representação da comunidade educativa”. Por seu turno, o n.º 2 estabelece a articulação com o município através da câmara municipal no respeito pelas competências do conselho municipal de educação estabelecidas pela legislação em vigor. Dando por suposto que, onde se lê “escola”, se lerá com legitimidade “agrupamento de escolas” ou “agrupamento resultante da agregação de agrupamentos de escolas e escola até então não agrupada”, é linear a conclusão de que nem as câmaras nem o Ministério da Educação e Ciência podem decidir unilateralmente qualquer matéria concernente à educação. Por isso, nunca percebi como conscientes autarcas executivos, que acompanharam, supervisionaram e aprovaram as respetivas cartas educativas, andaram a queixar-se do ME ou MEC, que andara a agrupar ou a agregar e até a encerrar “escolas”, sem conhecimento ou contra a vontade destes ilustres e conscienciosos detentores do poder local de proximidade, chegando muitos deles a desfilar garbosamente ao lado ou à cabeça de ruidosas manifestações populares e a correr para gabinetes ministeriais! De igual modo, merecem as drásticas vergastadas do pelourinho da massa crítica os sucessivos titulares da superintendência administrativa da nação (e seus altos representantes educativos) se efetivamente andaram a surpreender lá de cima ou de ali ao lado os autarcas e as populações, que estes tão solenemente juraram defender, talvez para garantia da manutenção de si próprios no poder. Onde esteve o conselho municipal de educação numa grande e significativa quantidade de municípios, órgão com uma razoável multiplicidade e notória diversidade de representantes e com tantas competências em relação à política educativa concelhia e à organização e alteração da rede escolar, como veremos? Ou as cartas educativas estavam mal elaboradas ou não foram revistas em tempo útil, de acordo com o normativo legal que as equipara a peça integrante do PDM ou, ainda, talvez os assuntos de educação sejam relevantes somente em determinadas ocasiões! É que a legislação, neste setor, não traz ambiguidades nem perplexidades, desde que os membros do órgão não primem pelo absentismo e façam o trabalho de casa, como sói dizer-se. Se não, vejamos:

A lei n.º 159/99, de 14 de setembro, que estabelece o quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais, na alínea b) do n.º 2 do artigo 19.º inscreve a criação dos conselhos locais de educação como uma das competências dos órgãos municipais, tal como a alínea a) inscreve a competência de elaborar a carta escolar a integrar nos planos diretores municipais. E a lei n.º 169/99, de 18 de setembro, (do regime de competências e funcionamento dos órgãos do poder local) com a redação que lhe foi dada pelas leis n.os 5-A/2002, de 11 de janeiro, e 75/2013, de 12 de setembro, na alínea c) do n.º 4 do artigo 53.º, atribui competência à Assembleia Municipal para, sob proposta da Câmara Municipal, deliberar sobre a criação do conselho local de educação, de acordo com a lei.

Porém, é o decreto-lei n.º 7/2003, de 15 de janeiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 41/2003, de 22 de agosto, retificada pela declaração de retificação n.º13/2003, de 11 de outubro, alterou a denominação de conselho local de educação para conselho municipal de educação e regulou as suas competências e composição, estipulando no art.º 8.º que as regras de funcionamento constam de regimento a aprovar pelo próprio conselho.

Em abono da multiplicidade e diversidade de representação, sigo o referido DL n.º 7/2003, com a redação dada pela lei n.º 41/2003, também referida. Segundo o art.º 5.º, compõem o conselho municipal de educação: taxativamente, presidente da câmara, que preside, presidente da assembleia, vereador da educação, que substitui o presidente em suas ausências e impedimentos, diretor regional de educação, ou quem as suas vezes fizer, um presidente de junta de freguesia eleito pela assembleia municipal e um representante do pessoal docente do ensino básico público; e, em conformidade com a existência ou não no município, dois representantes das associações de pais e encarregados de educação e um representante por cada uma seguintes entidades: instituições de ensino superior público, instituições de ensino superior privado, pessoal docente do ensino secundário público, pessoal docente da educação pré-escolar pública, estabelecimentos privados de educação e de ensino básico e secundário, associações de estudantes, instituições particulares de solidariedade social que desenvolvam atividade na área da educação, serviços públicos de saúde, serviços da segurança social, serviços de emprego e formação profissional, serviços públicos da área da juventude e do desporto, forças de segurança e conselho municipal de juventude (elemento aditado pela lei n.º 6 /2012, de 10 de fevereiro). E podem ser adicionados técnicos de reconhecida competência na área da educação.

Quanto à relevância do conselho, leia-se o art.º 3.º do citado DL:

“É uma instância de coordenação e consulta, que tem por objetivo promover, a nível municipal, a coordenação da política educativa, articulando a intervenção, no âmbito do sistema educativo, dos agentes educativos e dos parceiros sociais interessados, analisando e acompanhando o funcionamento do referido sistema e propondo as ações consideradas adequadas à promoção de maiores padrões de eficiência e eficácia do mesmo”.

E o art.º 4.º determina que, no quadro das suas competências, lhe compete deliberar, em especial, sobre as matérias de coordenação do sistema educativo e articulação da política educativa com outras políticas sociais; acompanhamento da elaboração e atualização da carta educativa; negociação e execução dos contratos de autonomia; apreciação dos projetos educativos do município; adequação das diferentes modalidades de ação social escolar às necessidades locais, designadamente apoios socioeducativos, rede de transportes escolares e alimentação; medidas de desenvolvimento educativo, no âmbito do apoio a crianças e jovens com necessidades educativas especiais, da organização de atividades de complemento curricular, da qualificação escolar e profissional dos jovens e da promoção de ofertas de formação ao longo da vida, do desenvolvimento do desporto escolar, bem como do apoio a iniciativas relevantes de caráter cultural, artístico, desportivo, de preservação do ambiente e de educação para a cidadania; programas e ações de prevenção e segurança dos espaços escolares e seus acessos; qualificação e requalificação do parque escolar; e análise do funcionamento dos estabelecimentos de educação pré-escolar e de ensino. Amplas competências, pois não?!

Sobre a carta educativa, acrescento ao que foi explicitado que, segundo o art.º 10.º, compagina, “a nível municipal, o instrumento de planeamento e ordenamento prospetivo de edifícios e equipamentos educativos a localizar no concelho, de acordo com as ofertas de educação e formação que seja necessário satisfazer, tendo em vista a melhor utilização dos recursos educativos, no quadro do desenvolvimento demográfico e socioeconómico” do município. E o art.º 19.º/3 esclarece que ela “integra o plano diretor municipal respetivo, estando, nestes termos, sujeita a ratificação governamental, mediante parecer prévio vinculativo do Ministério da Educação”.

Em termos da sua revisão, o art.º 20.º estabelece que: revestem a forma de revisão as alterações que se reflitam significativamente no ordenamento da rede educativa anteriormente aprovado, designadamente a criação ou o encerramento de novos estabelecimentos de educação pré-escolar e de ensino (n.º1); a revisão é obrigatória quando a rede educativa do município fique desconforme com os princípios, objetivos e parâmetros técnicos do ordenamento da rede educativa, devendo o processo de revisão ser iniciado a solicitação do Ministério da Educação ou das câmaras municipais (n.º 2); o Ministério e as câmaras reavaliam obrigatoriamente de cinco em cinco anos a necessidade da sua revisão (n.º 3); à sua revisão são aplicáveis os procedimentos previstos para a respetiva aprovação (n.º 4).

O conselho tem ainda competências no âmbito da rede educativa concelhia, que obrigam a constante atenção de todos a ponto de o art.º 13.º/2 explicitar que “a necessidade da adequação, em permanência, da oferta educativa, nomeadamente a que decorre das alterações da procura, em termos qualitativos e quantitativos, e do estado físico dos edifícios, obriga a um processo anual de apreciação e ajustamento da rede educativa.

Sendo assim, julgo não ser excessivo concluir que a profunda alteração do panorama das políticas educativas e da rede escolar em todos os municípios (encerramento de escolas, criação dos centros escolares, dos agrupamentos e dos vulgarmente denominados mega-agrupamentos), relegou o papel dos conselhos municipais de educação para o limbo da omissão, da penumbra ou mesmo da sombra. Muitas gargantas terão clamado, muitas responsabilidades terão sido jogadas porta fora, muito pouco se terá relido e escrito para atualização dos instrumentos de racionalização e gestão de meios. É a democracia portuguesa no seu baço esplendor!

O mugido da mudez

11-02-2014 21:02

O mugido da mudez

Passa hoje o primeiro ano sobre o anúncio da renúncia de Bento XVI ao sumo pontificado e não sobre a renúncia em si, como propala a comunicação social, que essa só se efetivou no dia 28. Parece que alguma da opinião pública, quiçá por se sentir aliviada com a atitude do alemão pastor, pretenderá agora fazer render psicologicamente o tempo que transcorreu sobre o evento.

Sem enaltecer em excesso o gesto ou sem querer subvalorizá-lo, pois, a sua relevância não carece da nossa opinião pessoal, gostava de o situar na data simbólica do dia 11 de fevereiro. É o dia da memória litúrgica de Nossa Senhora de Lurdes, aparecida em Lourdes, França, na gruta de Massabielle, na margem esquerda do Gave, no ano de 1858, a Bernardette Soubirous, humilde e adoentada pastorinha. Quer pelas palavras da mensagem quer pelos fenómenos miraculosos relatados, percebe-se que o núcleo fundamental da visitação consiste na santidade de vida, forjada na inocência do coração (“Eu sou a Imaculada Conceição” – é assim que se identifica a visitante), alimentada pela oração (anote-se a simplicidade do desfio do rosário) e que redunde na ação dedicada aos pobres e doentes, os destinatários privilegiados do cristianismo. Na sequência dos fenómenos do Gave (é bom não confundir com aquela entidade que tem dado à luz provas de aferição, exames nacionais e a abortada prova de avaliação de capacidades e conhecimentos dos alegadamente pré-docentes), o magistério eclesiástico proclamou o dogma da Imaculada Conceição, patrocinou as peregrinações à gruta e ao santuário que se erigiu na sua adjacência e instituiu o dia mundial do enfermo (nas últimas décadas, ocasião de eloquentes mensagens pontifícias sobre o valor do sofrimento e o sentido da limitação humana).

Ora, foi exatamente neste dia do enfermo e do doente que Bento XVI leu aos cardeais a sua DECLARATIO em que anuncia a sua intenção inabalável de renunciar ao exercício do ministério petrino, aprazado para o dia 28 do mesmo mês. Apesar de o seu auditório não ter sido muito numeroso (constituído pelos cardeais convocados e pelos jornalistas acreditados permanentemente no Vaticano), a alocução constitui um ato solene, já que foi redigida e proferida em latim, a língua oficial da Igreja Católica Latina. Recordo o episódio da jornalista que, por ter conhecimentos de latinidade, topou quase de imediato o teor das palavras que Bento pronunciara, pelo que, ainda em lágrimas de comoção, não deixou de questionar o porta-voz da sala de imprensa e de informar quanto antes a redação do seu periódico. Depois, há que reparar que o texto, embora datado da véspera, é pronunciado a 11, aduzindo realisticamente a falta das forças físicas e do espírito para prosseguir com a eficiência conveniente o múnus que fora confiado ao papa, ou, seja, o seu redator e proferente assume-se como doente, como marcado pela limitação humana. Por isso, renuncia ao ofício, que não ao dever, dado que se remete ao silêncio e ao firme propósito de não mais interferir (“E entre vós, entre o Colégio Cardinalício, está também o futuro Papa ao qual já hoje prometo a minha reverência e obediência incondicionadas” – 28/02, da saudação aos cardeais). Porém, não abdica do dever de zelo pelo bem da Igreja: “Mas quero ainda, com o meu coração, com o meu amor, com a minha oração, com a minha reflexão, com todas as minhas forças interiores, trabalhar para o bem comum, o bem da Igreja e da humanidade” – 28/02, da saudação aos fiéis de Albano. Já na aludida declaratio se propõe “ Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus”.

E, não obstante a lúcida consciência das suas limitações, não deixa de assinalar a inteira liberdade com que toma formalmente a sua grave decisão: “Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus […], bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005”.

Quase um ano depois, após um intervalo de quase esquecimento e até detração da sua obra e personalidade, que não da parte de Francisco, está já em curso um esforço de avaliação deste denominado pontificado de silêncio, esperando nós que se recuperem os conteúdos das mensagens de Bento XVI, o alcance das suas iniciativas e a exemplaridade do seu perfil teológico e pastoral (o pontificado da palavra). Penso que, para enaltecer a personalidade e a obra de alguém, não se requer o aviltamento ou o olvido de e outrem.

Sobre este juramento e prática de mudez silenciosa (vemos esporadicamente o papa emérito, mas não o ouvimos), lembro-me daquilo que tradicionalmente se afirma que Alberto Magno terá comentado acerca do seu discípulo Tomás de Aquino, a quem os companheiros apelidavam de “boi mudo”, dada a sua intrigante discrição, habitual silêncio e avantajada corpulência: “Este, a quem chamamos de boi mudo, mugirá tão forte que será ouvido no mundo inteiro”. E verdade é que o magistério eclesiástico não deixa de o citar recorrentemente e assumir as suas formulações teológicas e a filosofia aristotélico-tomista (estruturante do pensamento e intérprete do mundo e do homem) continua a ser objeto de estudo, sobretudo em países menos acomodados intelectualmente. Lembro-me de que, por ocasião da revolução abrilina, alguns comentadores utilizavam a expressão “aqui e agora”, que não passa da tradução literal de uma expressão recorrente na filosofia escolástica “hic et nunc”.

De Bento XVI gosto de dizer que se espera que o silêncio a que se votou nos últimos tempos se converta em proclamação em alta voz do produto da sua investigação e formulação teológica e, mau grado alguns controversos contornos de personagem, a exibição apostólica de seu perfil sirva de iluminação complementar da caminhada da Igreja peregrina e uma significativa batelada de pedradas no charco da calamidade ética que perpassa o mundo por culpa dos homens que, chamados a servir, fazem questão em se servirem de quem obrigam a servir.

Há não muitos dias referi o testemunho da diretora do Secretariado Diocesano da Pastoral Juvenil e Vocacional de Aveiro, Ondina Matos, que fez, em poucas palavras, uma boa resenha sobre o pontificado de Bento XVI – o que ainda não vi da parte de especialistas, que parecem, salvo honrosas exceções, exclusivamente focados no perfil insinuante, no discurso menos formal e no estilo galvanizador do papa argentino. Hoje recordo o que vi em https://reparatoris.com, sobre Megan Hodder, que do novo ateísmo esclarecido passa convictamente ao catolicismo, depois de ter lido Bento XVI, nomeadamente o famoso discurso em Ratisbona e o livrinho Sobre a consciência:

Há cerca de dois ou três anos ninguém poderia prever isto, porque Megan não recebeu absolutamente nenhuma educação cristã e lia com assiduidade e gosto autores de divulgação do “novo ateísmo”: Dawkins, Harris, Hitchens… Mas tudo mudou quando decidiu que para poder zombar da Igreja Católica, grande símbolo da irracionalidade, devia ler diretamente Bento XVI. E aí foi onde começou uma conversão marcada pela lógica, razão e pensamento.

Ela própria confessa:

“Esperava e desejava mostrar sua irracionalidade e preconceitos, para justificar meu ateísmo. Mas, em contrapartida, um Deus que era o Lógos Se me apresentou a mim; não como um ditador sobrenatural que esmaga a razão humana; mas a fonte de bondade e verdade objetivas, que Se expressa a Si mesmo, para a qual se oriente a nossa razão, e onde alcança sua plenitude; uma entidade que não controla a nossa moral de uma maneira robótica, mas que é a fonte da nossa perceção moral…”.

E que nos diz sobre Tomás de Aquino o papa da relação entre a fé e a razão? Eis um excerto da sua catequese de 2 de junho de 2010, na Praça de São Pedro:

Em última análise, Tomás de Aquino mostrou que entre fé cristã e razão subsiste uma harmonia natural. E foi esta a grande obra de Tomás, que naquele momento de desencontro entre duas culturas – naquele momento em que parecia que a fé devia render-se perante a razão – demonstrou que elas caminham pari passu, que, quanto parecia ser razão não compatível com a fé não era razão; e aquilo que parecia ser fé não era tal, enquanto se opunha à verdadeira racionalidade; deste modo, ele criou uma nova síntese, que veio a formar a cultura dos séculos seguintes.

E o mugido da mudez dos grandes homens irromperá qual argênteo discurso do silêncio, que é de ouro!

Duvidando educativamente…

09-02-2014 20:48

Duvidando educativamente…

Vêm ao caso umas dúvidas suaves que me ficaram depois de ter ouvido mui recentemente um esclarecido membro do governo da área da educação a perorar sobre o tema.

Após o enaltecimento da aposta na educação para a realização da cidadania e para a qualificação das pessoas no rumo do desenvolvimento, Sua Excelência referiu que o governo tem desenvolvido um enorme trabalho de reformas que, como sempre, uns aceitam e outros têm dificuldade em incorporar. Alegam que o governo não explica. Mas explicar o governo bem explica, só que os recetores de tal explicação é que não querem ter em conta todos os dados a ela concernentes. Foi por estas ou equivalentes palavras que se exprimiu. E eu fiquei a pensar se os preditos recetores, quiçá eu também, não entendem ou são mauzitos ou não querem que o governo governe e gostam supinamente da política de menosprezo pelo trabalho de outrem.

Também o governante, ao referir as alterações em curso no sistema educativo, explicitou que estava o governo a intervir na arquitetura do sistema sem mexer na estrutura. E disse que estava ultrapassada a distinção entre cursos do ensino regular e os do outro, pois ambos eram regulares já que obedeciam a regras estabelecidas, como referiu que iriam ser criados cursos de curta duração em estabelecimentos do ensino superior, sem atribuição de grau, mas para melhoria da qualificação. Francamente, dei de barato o caso da ultrapassagem da sobredita distinção, porque mais não revelava que uma simplificação nada feliz de linguagem, já que resulta da corruptela da designação de CSPOPE (cursos do ensino secundário predominantemente orientados para o prosseguimento de estudos) e CSPVA (cursos do ensino secundário predominantemente orientados para a vida ativa – os cursos profissionais e os cursos tecnológicos), da reforma de Roberto Carneiro, e rememora-me a velha distinção entre o clero regular, que obedecia a uma “regra” específica escrita por um fundador e o clero secular, que tinha outras regras, as emanadas do seu bispo, mas que vivia no mundo ou século. Por outro lado, já em 1977, o governo criou os cursos superiores de curta duração (com a atribuição do grau de bacharelato, em universidades e institutos superiores) e os de longa duração (com a atribuição do grau de licenciatura, em universidades). Mais tarde, criaram-se os cursos de estudos superiores especializados (CESE) equivalentes a licenciatura, em escolas superiores de educação, e as licenciaturas bietápicas, em institutos superiores politécnicos (depois, passaram todos a licenciar e hoje todos mestram!), bem como os cursos de especialização tecnológica, em algumas escolas profissionais, que celebrassem protocolos com instituições de ensino superior. Porém, se já não percebia muito de arquitetura, pior fiquei, porque o conceito de arquitetura tão complexo, por aquilo que me é dado perceber, implica a interligação com as estruturas. E fui verificar algumas definições.

Assim, recordo que, na obra vitruviana, se determinam os quatro elementos fundamentais da arquitetura: a firmitas, referente à estabilidade, ao caráter construtivo da arquitetura, à solidez e resistência; a utilitas, originariamente relacionada com a comodidade e, ao longo da história, associada à funcionalidade e ao utilitarismo; a venustas, ligada à beleza e à apreciação estética; e o decorum, vinculado à dignidade da arquitetura e à necessidade de rejeição dos elementos supérfluos – recordam-se do inutilia truncat setecentista português? – e ao respeito pelas tradições ou ordens arquitetónicas. Deste ponto de vista, uma construção passa a ser chamada de arquitetura quando, além de ser firme e bem estruturada (firmitas), possui uma função específica (utilitas), respeita as ordem clássicas (decorum) e, principalmente, se for bela  (venustas). E, se a estes predicados for adicionado o da antiguidade (vetustas), a construção torna-se monumento. Modernamente e segundo Lúcio Costa, "arquitetura é, antes de mais nada, construção, mas, construção concebida com o propósito primordial de ordenar e organizar o espaço para determinada finalidade e visando a determinada intenção”. A teorização da arquitetura moderna, que não ilegitima quaisquer outras manifestações históricas, mas recusa liminarmente a transferência servil de outros momentos históricos para a contemporaneidade, engloba, no entanto, também toda a arquitetura produzida dantes, dado que manifesta claramente que a arquitetura resulta sempre de um programa multidisciplinar, que integra as variáveis sociais, culturais, económicas e artísticas do momento histórico.

Ora, voltando ao raciocínio do aludido governante, fico a matutar se efetivamente o que o governo quer é mexer na decoração do sistema. Então é simples: promove aposentação antecipada de docentes ou suas rescisões amigáveis e sobrecarrega os resistentes e/ou vincula outros; acaba CNO e cria CQEP e/ou coloca a formação de adultos sob outras dependências institucionais, passando o MEC a gastar bastante menos com ela; tira professores e coloca formadores; arreda professores contratados e atribui novas missões a professores dos quadros; reduz o desenho curricular, mas obriga os professores a guardar nos quartéis escolares os alunos durante mais tempo (a disposição atual dos recintos escolares não faz lembrar o convento, a prisão ou, na melhor das hipóteses, o quartel militar?); retira dos programas competências e recoloca objetivos e conteúdos; anula metas de aprendizagem e define metas curriculares; revoga programas disciplinares e estatuto do aluno e cria novos programas e elabora novo estatuto do aluno, a que junta “ética escolar”; enfim, muda tanta coisa para que tudo fique quase na mesma, alterando o fardamento. É operação de cosmética ou alteração epidérmico-epigráfica de estilo.

Vai o governo intervir no painel de exigências para acesso à formação inicial de professores. Não quer dizer que os atuais professores não tenham qualidade, mas temos de estabelecer o patamar da excelência. Este belo propósito (Já sabia que vai ser exigido aos novéis candidatos a professor da educação básica o exame de Matemática. E porque não aos outros?) permite-me uns pontos de reflexão:

E a formação inicial de professores e dirigentes escolares, nas outras áreas, não precisará de melhorias e de outras exigências, para que não se afaste de vez o fantasma da necessidade da prova de avaliação de capacidades e conhecimentos para ingresso na carreira docente? Só a título de exemplo, os professores de Português não deviam possuir conhecimentos no âmbito da língua e literatura gregas e no da língua e literatura latinas? Por outro lado, só o acesso à formação inicial de professores é que precisa de intervenção? Que é dos outros? Vai o MEC continuar a fazer incidir o recrutamento dos alunos do ensino superior somente na classificação académica? E os critérios de perfil humano, de cidadão, de solidariedade, etc. – aferidos, por exemplo, através de testes psicotécnicos ou similares? Porque não a valorização (com média final) da Educação Física para todos os cursos (Qual foi o lóbi que se sobrepôs para tal desistência? – é de questionar.)? Não será ela útil na medicina, na engenharia civil ou na de minas, nos estudos de veterinária, de agricultura e silvicultura, de pecuária, etc.? Ou ela consiste somente na ginástica? Porque não incluir uma disciplina de ética e cidadania em alternativa à EMRC, de modo que todos os alunos pudessem ostentar uma classificação académica no ingresso no ensino superior ou no lançamento na vida ativa? Mais: todos os docentes e seus gestores deveriam ter no currículo académico formativo uma cadeira de ética e deontologia, pois, não?! E, se é preciso estabelecer o patamar da excelência, porque limitar a atribuição da menção de “excelente” a 5% de cada universo de docentes a avaliar no quadro da avaliação de desempenho?

Finalmente, uma referência ao putativo direito de o jovem dever ou poder estudar ou fazer aquilo de que gosta. Entendo como perfeitamente legítimo e razoável que jovem e seus pais desejem essa hipótese para o educando. Já duvido de que a mensagem possa razoavelmente provir de governantes. E a escola democrática e com o sentido da realidade deve efetivamente preparar os jovens para se desempenharem excelentemente naquilo de que gostam. Porém, a vida é o que é, e muito dificilmente oferece ao jovem, futuro trabalhador e/ou empresário somente ou principalmente aquilo de que ele gosta. Por isso, a escola tem a obrigação, sob pena de trair expectativas, de preparar o jovem para lidar com aquilo de que gosta menos ou até com aquilo de que não gosta. E terão todos os jovens a possibilidade de fazer só aquilo de que gostam. Se sim, quem fará o resto; se não, como escolher os que podem dar azo à sua aspiração e como ter a certeza de que se acerta? E poderão fazer tudo aquilo de que gostam, mesmo que infernizar os professores? Aliás, se o governo acredita tanto na política do que se gosta, porque é que limita tanto a oferta educativa e formativa nas escolas em relação às pretensões dos jovens e encarregados de educação (as ofertas formativas são bem crivadas na rede escolar e na de formação e exigem um mínimo de 20 de formandos para concretização de cada uma!). Depois, pergunto-me se, por exemplo, os militares gostam das guerras para onde os enviam, os bombeiros dos fogos florestais, os profissionais dos transportes para o paraíso dos funerais ou se meus colegas e eu gostávamos tanto de trabalhar por conta de uma multinacional de limpeza em Estrasburgo no verão de 1973. E será que só os jovens terão o direito de fazer aquilo de que gostam? E os professores não terão o direito de serem menos perturbados no seu desempenho (por alunos, dirigentes e políticas educativas abstrusas…) e na fruição de salário condigno, sem cortes escandalosos? O mesmo se diga dos outros trabalhadores no ativo, dos aposentados e reformados e dos desempregados!

Portanto, para que os marotos dos portugueses não fiquem com tantas dúvidas depois de escutarem os governantes, aqui do cantinho da minha soberba humildade peço maior temperança discursiva e sobretudo que nunca entrem preguiçosamente na tentação da demagogia. Ab omni tentaione, libera nos, Domine!

Coisas do arco-da-velha

08-02-2014 01:01

Coisas do arco-da-velha

No passado dia 6, no chamado Bairro Vermelho, em Amesterdão, na Holanda, foi inaugurado o primeiro museu da prostituição, que abre do meio-dia à meia-noite e cuja entrada, facultada até às crianças (será em nome dos superiores interesses da criança?!), custa 7,50 euros.

Tal facto aberrante é notícia se considerado em si mesmo, mas também pelos comentários vindos a público da parte dos seus promotores, bem como pelas iniciativas conexas com o putativo espaço museológico. E a imprensa salienta a novidade – pasme-se! – de os visitantes poderem “entrar num bordel sem terem de se despir”. E eu fico a pensar se, quando visito um museu tradicional de outras valências, a contrario sou obrigado a munir-me de ferramentas e adereços de escultura, peças epigráficas, ícones, pintura, cerâmica, metais, paramentaria, material elétrico ou telefónico, numismática, medalhística, esfragística, etc. Ou, em vez de um museu, estes industriais e comerciantes de corpos humanos, não estarão a criar antes uma oficina de caraterísticas bem peculiares? Talvez os mentores de tal iniciativa holandesa queiram, sim, introduzir os visitantes no submundo que, de outro modo, eles teriam dificuldade em penetrar, fosse por falta de dinheiro, de interesse ou de idade adequada.

Porém, o que mais brada aos costumes não será a apologia da prostituição (que o é efetivamente!), mas os epítetos com que este modo de ocupação, legalizado na Holanda desde o ano 2000, é referenciado a propósito da efeméride – negócio, comércio, indústria, atividade, trabalho…

Querem os iluminados convencer os incautos de que o Red Light Secrets, revelador dos segredos da prostituição, sito nas instalações de antigo bordel no famoso Red Light District, conseguirá «eliminar alguns preconceitos» em relação à mais antiga profissão do mundo. Mas que preconceitos? Não sabe já toda a gente que esta atividade calcorreou um pouco os mais diversos lugares espaciais e temporais de que há memória, quer sendo objeto de crítica e condenação moral e social (e eventualmente criminalizada), quer sendo tolerada ou mesmo legalizada? Não é verdade que a veterotestamentária prostituta Raab é uma das muito poucas mulheres que integram a linha genealógica de Cristo (cf Mt 1,5)? E não são famosos os desmandos sexuais e pantagruélicos dos romanos, sobretudo nos períodos da decadência?

Os curiosos – também denominados visitantes, turistas e clientes especiais – encontrarão diversas atrações, como um quarto dedicado ao sadomasoquismo e uma divisão onde se podem sentar em frente à janela, à vista dos potenciais clientes, para saberem como se sentem as «meninas» quando estão a “trabalhar”. Meninas, trabalho, profissão, clientela – tudo eufemismos para caraterizar um vício moral e social que em nada contribui para a dignificação da mulher (ou alternativo masculino) nem para a do dito cliente, e que constituem um meio de evasão para a falta de condições económicas ou familiares, uma falaciosa forma de compensação caprichosa da irrealização conjugal ou do gasto perdulário de dinheiro. Acrescente-se a isto a criação e engorda de redes de interesses a custo da escravização viciosa dos afetos e da degradação corporal. Ou não é verdade que Melcher de Wind argumenta que as crianças, sobretudo as raparigas, poderão ficar a conhecer melhor alguns «truques» que os homens usam para as trazer para a prostituição?

E Ilonka Stakelborough, fundadora da “Fundação Geisha” que se ocupa dos direitos e liberdades do setor, não declarou à agência EFE que o museu daquele bairro turístico holandês onde trabalham 900 prostitutas, muitas delas em montras de estabelecimentos comerciais, quer dar uma visão do mercado sexual, sem “romantismo”? Até acrescentou que o empreendimento, que partiu de uma iniciativa privada para a “normalização” da profissão, não esquece a denúncia do trabalho forçado por proxenetas e redes, sobretudo “provenientes dos Balcãs”!

Penso que também se torna imperioso reparar nesta hipócrita sugestão de resposta a uma farisaica postura perante o falso e cómodo pudor moral e social: “Segundo Melcher de Wind, da organização do museu, a iniciativa é para aqueles que querem saber mais sobre como funciona este negócio, sem terem que travar contacto com uma profissional do sexo”. É-lhes ainda facultado o conhecimento da moda ligada à prostituição ao longo das décadas, bem como o das réplicas das famosas montras onde as mulheres se exibem, uma prática que, no Bairro Vermelho, começou em finais do século XIX.

As prostitutas do mencionado departamento topográfico, segundo as fontes do próprio museu, ligado à Fundação Geisha, que aborda também as questões da integração e da autodefesa das prostitutas, são mulheres entre os 21 e os 55 anos, jovens que não conseguem pagar os estudos ou mães solteiras, mas cerca de 70 por cento têm uma relação estável. Trabalham em média durante cinco anos, mas muitas acabam por não se retirar porque se acostumam a um nível de vida com rendimentos superiores. Porém, muitas raparigas e mulheres – estudantes, por exemplo – não querem inscrever-se como profissionais naquele mercado de trabalho porque fica registado no seu currículo, pelo que trabalham em mister semelhante nas próprias casas (na Holanda de Maastricht, da União Europeia!).

E podem vir dizer-nos que é uma generosa oportunidade de criação de postos de emprego direto e fomento do emprego indireto, pois, de acordo com o jornal Sidney Morning Herald, o museu-oficina exibe um curto vídeo que menciona muitas das pessoas que também trabalham no ramo, incluindo funcionários de limpeza, de manutenção do espaço, de lavagem de roupa, entre outros.

A imprensa faz, a este propósito, uma retrospetiva da prostituição na Holanda, recordando que ela se tornou legal na Holanda em 2000 e, recentemente, a idade mínima para as mulheres trabalharem neste negócio passou dos 18 para os 21 anos. Contudo, desde o século XVI que as autoridades «fechavam os olhos» aos marinheiros que vinham a terra à procura de diversão noturna, numa altura de grande prosperidade da cidade com o comércio de especiarias e outros bens. Mais tarde, na altura das guerras Napoleónicas, as prostitutas da cidade começaram a fazer exames médicos regulares obrigatórios, para combater a propagação de doenças entre os militares.

Se passarmos os olhos pelo mundo da antiguidade, registaremos informações curiosas. Na Antiguidade Oriental, fala-se da prática da prostituição com fins rituais. O geógrafo grego Strabo, por exemplo, relatou que os assírios ofereciam as suas filhas ainda muito jovens, com aproximadamente 12 anos de idade, para a prostituição ritual ou prostituição sagrada. Heródoto, considerado o pai da História, descreveu de forma repugnante a prostituição babilónica realizada no interior do templo da deusa Ishtar. Na antiga Grécia, a prática da prostituição era tida como uma componente da vida quotidiana. Nas suas cidades mais importantes, nomeadamente nas portuárias, esta atividade económica de relevo, não clandestina, empregava uma parte não negligenciável da população: mulheres de todas as idades (que detinham entre si uma hierarquia, mas que possuíam dotes artísticos ou circulavam livremente entre a elite) e jovens do sexo masculino prostituíam-se para uma clientela maioritariamente masculina. Em Atenas,  era atribuída a Sólon a criação de bordéis estatais com preços regulados.

Na Roma antiga, a atividade era reconhecida e regulamentada. As prostitutas, as chamadas lobas, eram registadas, pagando mesmo impostos sobre os seus ganhos. Em geral, usavam cabelo loiro ou vermelho, vestiam-se com tecidos floridos ou transparentes, não podendo, por lei, usar nem estola nem a cor violeta, adereços reservados às mulheres livres. O local mais comum de trabalho era sob os arcos arquitetónicos (a palavra “fornicação” e outras da mesma família gramatical vêm do latim fornix, fornicis, que significa arco, abóbada, ponte/viaduto). Fornix era o arco da porta sob a qual as prostitutas romanas se exibiam. As meretrizes ficavam por lá porque, além de ligar o lugar ao sexo, a mulher romana devia, a não ser que não tivesse nem pai, nem marido, nem filhos do sexo masculino, sempre obediência a um homem. As mulheres deveriam ficar sempre dentro dos limites da casa/prédio do seu dono ou protetor – por isso, não podiam passar do arco (ultra fornicem). E deviam proceder às convencionais medidas higiénicas, as ablutiones.

A Idade Média criminalizou e perseguiu a prostituição, tal como outras práticas sexuais hetrodoxas – não se quer dizer que a sua prática se tivesse eclipsado – até que o século das luzes e os momentos seguintes a toleraram e, em muitos casos, a legalizaram.

Ora bem, depois deste arrazoado, há que chegar a conclusões, que passo a formular.

Ninguém que se preze arrisca, sob pena de negar a essência da pessoa humana, entrar numa via de degradação ou destruição da dignidade pessoal e da cidadania em nome de uma religião, que se fez para felicidade do homem e glória de Deus (Hoje já não se faz por Deus a guerra ou a imolação humana; embora Ele seja invocado para tal, os verdadeiros motivos são outros, exceto para uns tantos fanáticos). Não é pelo facto de as autoridades criminalizarem um ato ou uma atividade e até perseguir os recetivos infratores que ela deixa de se praticar, como não é por ela perpassar civilizações, espaços e tempos que fica ratificada. E não pode ser que as tentações ou as circunstâncias (como tempo de guerra ou o embarcamento) que motivem a prostituição levem a que ela se torne aceitável nem mesmo tolerável.

Pelo que há que denunciar uma sociedade hipócrita que passa a condenar as violações, os abusos sexuais, o tráfico de órgãos, a exploração do trabalho e o tráfico de pessoas, enquanto tolera, frequenta e fomenta o negócio do corpo humano. Mais: faz deste negócio explorador um meio de presumível promoção turística e cultural, para o que mobiliza as estratégias da sedução, da desinibição, da simulação e do sadomasoquismo.

Também nesta matéria é salutar ouvir o apóstolo: “Foi para a liberdade que fostes chamados. Só que não deveis deixar que essa liberdade se torne numa ocasião para os apetites carnais” (…). “Ora, se vos mordeis uns aos outros, cuidado, não sejais devorados uns pelos outros.” (cf Gl 5,13.15).

Basta de desmandos legitimados, minha gente! Combate à exploração do homem pelo homem e ao despautério dos vis interesses!

A igualdade perante a lei

06-02-2014 19:41

A igualdade perante a lei

Ontem, 5 de abril, a RTP informação apresentou um “Justiça Cega” especial com base nas declarações proferidas pela Procuradora Geral da República na sua primeira entrevista do seu mandato. Perante a moderadora habitual do programa, os indefetíveis interlocutores – Marinho e Pinto e Rui Rangel – passaram em revista várias temáticas desde a complexidade e morosidade da investigação ao segredo de justiça, bem como à corrupção, questões diplomáticas e sentido da administração da justiça.

Se alguém pode dizer que nada de novo se passou, também é certo que foram ali proferidas asserções curiosas, de entre as quais registo as seguintes: os juízes não se deixam pressionar (gostava de continuar a crer em tal afirmação); a investigação e a justiça não se pautam por critérios de ordem política nem diplomática (mas foram afirmações baseadas em situações de investigação que azedaram as relações com Angola); a presunção de inocência até decisão condenatória transitada em julgado é atributo do juiz e não do Ministério Público; a algumas investigações não interessa o segredo de justiça; que não se combate eficazmente a corrupção pela via judicial, mas pelo lado da cidadania e da vontade política; e o Ministério Público, ante a verificação de opinião pública distorcida, tem o dever de esclarecer e até tranquilizar a opinião pública. E também uma que me deu que pensar: quando se abre investigação sobre um cidadão estrangeiro que depositou uma determinada quantia de dinheiro num banco português, à partida, não deveria haver uma investigação judicial, mas outra noutro âmbito, por exemplo, do Banco de Portugal. E interroguei-me como é que se terá ficado a saber uma coisa dessas, sendo certo que, a menos que se reúnam condições de suspeita de aquisição ilícita, prevalece o sigilo bancário. Quem o levanta? Quem o viola?

Porém, a coisa que me ficou a pairar no ouvido foi que todos são iguais perante a lei – dizia um – mas uns são mais iguais do que outros – acrescentava o outro – pois, as prisões estão repletas de pobres, enquanto os ricos usualmente conseguem eximir-se. E recordei a historieta que refere que a professora do primeiro ciclo professava com toda a convicção que as meninas e os meninos eram todos tratados da mesma maneira porque todos são iguais. Porém, quando uma menina questionou porque é que a senhora com uns tinha umas palavras brandas e os tratava por “-nho” (ou “-inha”), mas a outros ralhava e tratava pelo nome, ela justificou-se: “De facto, todos são iguais, mas alguns são mais iguais”.

Perante isto, dei-me ao desporto de ler a Constituição da República Portuguesa (CRP) e ver o que por lá se estabelece, em conformidade com a Declaração Universal do Direitos Humanos (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” /art.º 1.º).

Ora a nossa CRP, no seu art.º 13.º/1, enuncia: “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” – princípio que deve entender-se como corolário do princípio fundamental “a dignidade da pessoa humana”, consagrado no art.º 1.º, e que se constitui uma das bases em que assenta a soberania da nossa República, a par da “vontade popular”, com vista à “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa/Anotada (Coimbra Editora, 1984:148-149), de que respigo alguns ensinamentos, explicitam que o princípio da igualdade, proclamando a “idêntica ‘validade cívica’ de todos os cidadãos”, disciplina as relações entre os cidadãos e o Estado (ou relações equiparadas) e estabelece a regra da conformação social da posição de cada cidadão perante a coletividade. Por outro lado, deve ser assumido como um princípio “estruturante do Estado de direito democrático”, já que “impõe a igualdade na aplicação do direito”, com base na universalidade da lei e na inibição da diferenciação estribada em condições meramente subjetivas; “garante a igualdade de participação na vida política e de acesso aos cargos públicos e funções políticas”; e postula a eliminação (a minoração – diria eu) das desigualdades de facto para assegurar uma (tendencial) igualdade económica, social e cultural.

Confrontando o preceituado constitucionalmente, que normalmente é transcrito para a maior parte das leis de bases setoriais, com a prática (e, como dizia um instrutor que tive, “praticamente na prática o que interessa é a prática”), o perplexo cidadão comum – que sofre os cortes salariais ou de pensões, o aumento do custo de vida, a dificuldade de acesso ao serviço nacional de saúde (vejam-se as listas de espera, a dificuldade de marcação de consultas e de intervenções cirúrgicas, o congestionamento das urgências, o aumento das taxas moderadoras, a penúria de recursos, o encerramento de unidades de atendimento, o aumento de descontos para os subsistemas) e a dificuldade crescente de acesso à justiça (pesada, cara, morosa e burocratizada) – tende a interrogar-se de forma “atualizadamente governamentalizada” em que é que a Constituição o tem beneficiado ou vai beneficiar.

Depois, ouvimos proclamar os arautos da normalidade: a justiça funciona; o serviço nacional de saúde continua a responder; as falhas são pontuais ou constituem casos isolados.

Afinal, em que República vivemos? Nalguma do estudantado de Coimbra?

No aniversário do anúncio da renúncia de Bento XVI ao pontificado

05-02-2014 21:05

No aniversário do anúncio da renúncia de Bento XVI ao pontificado

Ainda bem que se começa a fazer jus à postura de Bento XVI e se dá relevo às suas opções de fundo e ao estilo da sua atuação. São pelo menos três vozes portuguesas que vêm a terreiro público colocar na rota direita a obra daquele pontífice, ora emérito, tentando perceber o significado do seu gesto de renúncia à luz da sua declaração ao consistório de 11 de fevereiro do ano passado e com a leitura que os factos subsequentes permitem soletrar.

A reitora da Universidade Católica Portuguesa (UCP) pensa que Bento deu a todos “uma lição de humildade” ao renunciar ao exercício do ministério petrino, gesto “que é muito difícil de ter para quem detém o poder”. Com efeito, mesmo que se trate da esfera eclesiástica (onde também o carreirismo tem sido tentador), a abdicação, resignação ou renúncia (que não demissão ou exoneração – estas implicam ou a desistência ou a dispensa de encargos) parece contrariar o lado humano das coisas, já que quem detenha o poder “gosta de o exercer até ao fim”. E nós conhecemos situações de pessoas que se colam à cadeira do poder de forma obstinada, tudo fazendo para a sua manutenção, chegando a inventar-se os mais díspares pretextos. Mas a académica entende – e muito bem – o poder como serviço (ministério ou diaconia), que não pertence aos seus detentores, “é qualquer coisa que se exerce num quadro de liberdade e de responsabilidade até ao momento em que se compreende quais são os limites dessa mesma responsabilidade e dessa mesma liberdade”.

Por seu turno, José Manuel Fernandes, atual responsável pela revista XXI, Ter Opinião, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, considera que a renúncia papal abriu espaço para “um novo paradigma” na conceção do papado e no seu processo de sucessão. Declara o jornalista que se trata de uma “decisão individual”, feita em nome da “reforma” da Igreja Católica, contrariando a ordem habitual das coisas, espelhada – digo eu – na forma como se finou o exercício do múnus petrino por parte da longa lista dos seus predecessores.

O jornalista aflora os obstáculos que estavam a dificultar a ação beneditina (os casos de abuso sexual da parte de bastantes dos clérigos, as questões financeiras e as questões atinentes aos costumes e ao diálogo inter-religioso), a determinação com que aquele sucessor de Pedro encarava as medidas a tomar e a solidão e hostilidade com que estava a debater-se.

Ambos os intervenientes na matéria destacam, na decisão pontifícia, o fenómeno surpresa, a admiração e a compreensão. Porém, diferenciam-se no enfoque. A académica salienta a dificuldade da tomada de decisão em que se encontra “uma grande humildade, uma reflexão sobre o poder e o seu exercício e a forma como este deve ser exercido” e ainda a forma como Bento XVI “em liberdade renuncia a esse mesmo exercício do poder e tudo num quadro de uma enorme solidão, em termos pessoais, obviamente, mas de diálogo permanente com Deus.” Já o responsável da citada revista remete para tempos mais remotos o saber-se se a decisão foi efetivamente revolucionária, até porque a Igreja tinha de responder a questões levantadas em várias frentes. Mas há uma coisa em que ele tem toda a razão. Verifica que os conteúdos abordados por Bento XVI e por Francisco não são divergentes. Assim, o jornalista-analista assegura que, “ao contrário daquilo que a comunicação social quer fazer crer, as duas figuras “não estão assim tão separadas uma da outra”. E justifica a diferença de entendimento por parte da opinião pública pela diferença de estilo, é certo, mas também e sobretudo pela forma como os dois líderes católicos foram recebidos pelo “ambiente mediático”. Como fundamentação, dá como exemplo a forma como os dois últimos papas refletiram sobre a crise socioeconómica, nas suas encíclicas e mensagens, afirmando: “Aquilo que o Papa Francisco diz de uma forma muito terra-a-terra, pela qual às vezes o acusam de ser populista, não é muito diferente do que já estava na encíclica sobre a Caridade ou na intervenção de Ano Novo de 2013 de Bento XVI”.

Sobre a verdadeira razão pela qual o predecessor apresenta a renúncia, vale a pena reler o significativo excerto da sua declaração, em que destaquei/grifei alguns segmentos:

Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para  administrar bem o ministério que me foi confiado.

Não creio restarem dúvidas da lucidez do pontífice, então ainda em exercício, ao reconhecer a diminuição das forças por razões de idade e ao sentir que, não obstante dever o seu ministério ser cumprido com palavras e obras, a par da oração e do sofrimento, lhe estar a faltar o necessário vigor do corpo e do espírito. E dá-nos conta da sua consciência da “gravidade deste ato” que assume “com plena liberdade”.

Porém, o testemunho que mais me apraz registar é o da diretora do Secretariado Diocesano da Pastoral Juvenil e Vocacional de Aveiro, Ondina Matos. Sem se perder em considerandos sobre a idade ou a saúde de Bento, a sua natural timidez ou a sua anterior função de guarda do fidei depositum, a extensão dos seus escritos ou maior necessidade de delegar competências, pega nas pontas essenciais não somente da doutrina, mas do próprio estilo, que muita da imprensa não soube ou não quis anotar.

Esta agente pastoral vê no ato de renúncia um gesto natural do homem que sempre teve o “olhar colocado no futuro”, e faz uma retrospetiva de alguns dos “momentos mais marcantes” do pontificado de Ratzinger, de que releva as três jornadas mundiais da juventude em que participou. Logo em Colónia, “pouca gente estava à espera de sentir um Papa chegar de forma tão sorridente e acolhedora” e logo encetou com os jovens “um caminho de proximidade”. E Sidney continuou e consolidou esse percurso conjunto. Refere mesmo o caso de Madrid: o encerramento da jornada, no aeródromo de Cuatro Vientos, foi marcado por uma grande tempestade, mas Bento XVI insistiu junto dos sacerdotes que o acompanhavam para “voltar e concluir a celebração”. E acrescenta as palavras cativantes de conluio com os jovens “vivemos esta aventura juntos, isto foi uma aventura para vocês e para mim”.

Mas Ondina Matos destaca ainda duas coisas: as realizações atinentes à sua missão no âmbito teológico-espiritual – o Ano Paulino, o Ano Sacerdotal e o Ano da Fé – como momentos importantes da ação pastoral no contexto de “preocupações muito concretas” da Igreja Católica e que “fizeram despertar” as Igrejas locais para as temáticas essenciais em Igreja; e a criação e utilização da conta papal no Twitter, como sinal do interesse que as redes sociais tiveram para o papa alemão – “um papa atento à evolução dos tempos, que encarava a comunicação como uma ferramenta essencial para a proximidade com as pessoas”.

Finalmente, voltando aos conteúdos, não posso deixar de acompanhar José Manuel Fernandes ao apontar o roteiro das encíclicas, completado pelo seu sucessor a rematar em termos doutrinais o Ano da Fé, que teve a obrigação (e penso que também o gosto) de prosseguir e encerrar celebrativamente, bem como a lista bastante longa e conseguida de intervenções ousadas no aspeto doutrinal e na vertente sociopolítica – as exortações apostólicas, os discursos, as mensagens, as homilias, as catequeses, as respostas aos jornalistas e as viagens – de contactos multifacetados em atenção, proximidade e protocolo, um pouco pelo mundo possível.

Surja quem com mais sabedoria que o comum dos mortais dê o devido relevo ao papel eclesial de Ratzinger, não tanto pela simpatia para com a sua personalidade (que bem a merece), mas sobretudo para que a doutrina não fique no olvido. A causa dos homens e a glória de Deus o postulam.

A reitora da UCP declara que “não sabemos se esse silêncio no final nos vai deixar obra escrita para ser meditada ou se pura e simplesmente é um silêncio de reflexão pessoal e de diálogo interior, não sabemos e, por isso, o melhor é não especular e respeitar apenas a sua decisão”. E conclui: “Respeitemos o homem, a pessoa que ele foi e as lições que ele nos tem dado e seguramente que vai continuar a dar, sendo que esta lição do silêncio é uma muito bonita visto que acontece num período mediático, onde toda a gente se coloca em bicos de pés para ser vista e este é o caso de alguém que escolheu o silêncio, não querendo ser visto ou ouvido”.

Quem sabe – interrogo-me – se o silêncio e a discrição a que se votou livremente nos últimos tempos não trarão frutíferas surpresas à Igreja e ao Mundo!

O Papa Francisco e a pobreza

05-02-2014 15:34

O Papa Francisco e a pobreza

Todos nos lembramos do motivo da adoção do nome Francisco por Bergoglio no conclave que o elegeu para Bispo de Roma, o pedido do cardeal que lhe estava mais próximo a clamar que não se esquecesse dos pobres. De facto, Francisco de Assis é o protótipo daquele que, não sendo Deus, mas tendo nascido na condição de rico e socialmente bem colocado, abraçou a pobreza para, de mão dada com esta excelente dama, empreender a renovação da Igreja.

A princípio, recolhido em oração na degradada ermida de São Pedro Damião, ao escutar a voz do céu apelante “Francisco, reconstrói a minha Igreja”, o próximo futuro fundador de uma das duas ordens mendicantes, pensava tratar-se da reconstrução física daquele minúsculo edifício onde de vez em quando se reunira a “Igreja Peregrina de Deus”. Porém, depressa se lhe abriram os olhos da fé apostólica e com um grupo de companheiros ousou encetar a caminhada irreversível de, à semelhança do Cristo pobre em absoluto, inteiramente casto e “obediente até à morte e morte de Cruz (Fl2,8), reformar a Igreja Católica. A sua metodologia, mais do que nas palavras, consistia na atitude de abraçar o mundo, o envolver com o olhar do Evangelho e, em mudo sermão, lembrar à estrutura eclesiástica que, mais do que a Cruzada ou o poder, era necessário apostar no serviço e colocar em proveito dos pobres os recursos, que todos sabemos serem, em última análise, património de todos. Para tanto, era necessária a transmutação das mentalidades, dos corações e das atitudes cristãs – remontar às origens do cristianismo – o que não se afigurava nada fácil.

Porém, tal como o status ecclesiasticus de quando em quando se cola aos poderes até se guindar à posição hegemónica, também os companheiros de sucessão franciscana foram transformando a pobreza em riqueza a ponto de no século de seiscentos estarem mais vocacionados para o ensino dos filhos de gente mais rica, ficando o cuidado dos pobres disponível para a recém-constituída sociedade jesuítica, que votava a obediência ao Papa, em adição aos conselhos evangélicos.

A História, que muitos dizem que não se repete, dá muitas voltas e os membros das diversas agremiações de vida consagrada e apostólica, que fazem gala de seguir a pureza evangélica cada uma a professá-la alegadamente de modo mais eminente, entrecruzam-se surpreendentemente na assunção de carismas. E o conclave de 13 de março do ano da graça de 2013, apresentou ao mundo um Sumo Pontífice jesuíta, agarrado à singeleza da túnica dominicana e com nome e postura tão franciscana que alguns (agora extaticamente arrebatados pelo discurso papal e seu novo estilo) se questionaram sobre a profundidade da sua formulação teológica.

E que pretende este papa? Que a Igreja, mesmo com o risco de ficar acidentada, não se amolde à comodidade do centro, mas vá a todas “as periferias”, é claro sem perder de vista e de coração o centro donde irradia a força do Espírito. Enfim, quer que os pastores o sejam, mas com o odor das ovelhas!

E este papa dos pobres (cujo universo os governos de muitos estados do nosso mundo não se importam de engrossar cada vez mais), a par do anúncio da esperança por que vale a pena os homens comprometerem-se na transformação deste mundo cão, denuncia a economia que mata, pisando tudo e espezinhando todos, captando para uns o lucro desmesurado, imediato e fácil, e faz o apelo ao regresso às malhas da ética de matriz antropológica.

E, enquanto batem palmas às invectivas papais, os poderes políticos, em obediência ao neocapital sem rosto, mas com músculo e, de vez em quando, com mansas falinhas de incentivo à perdulariedade crediária a pagar dramaticamente em futuro próximo, progridem com a sua cruzada de disfarce da realidade, fazendo uma leitura mascaradora dos números e, perante o incómodo do presente, entretêm o povo com a promessa da comodidade do progresso futuro.

Entretanto, Francisco escreveu a sua primeira mensagem quaresmal para 2104, a 26 de dezembro do ano transato. Não posso deixar de destacar a relevância simbólica deste dia. É o dia do martírio do diácono Estêvão, o designado como protomártir.

Ora, nos primeiros tempos do cristianismo, a principal função diaconal era o serviço das mesas (para que os apóstolos se aplicassem inteiramente à oração e ao ministério da Palavra – Act 6,4). Nesse serviço das mesas, as tarefas prioritárias eram a distribuição equitativa e a especial atenção aos pobres. Ainda hoje quando se quer acentuar a dimensão de serviço da Igreja se fala da “diaconia”. E consta que, ao tomarem contacto com a propalada riqueza da Comunidade Cristã de Roma, as autoridades imperiais interrogaram o diácono Lourenço sobre o património da Igreja, tendo este respondido com a apresentação de um largo conjunto de pobres. Em resultado desse franco atrevimento, pagou com o martírio. Mas, se buscarmos o sentido originário da palavra “mártir”, encontraremos o significado de testemunha (aquele que viu e ouviu; por isso, fala com desassombro).

Então, o ensino e a morte de Estêvão constituíram um eloquente e exemplar testemunho. E são essas dimensões de serviço e testemunho, aliadas às da santificação e do ministério da palavra que estruturam o ser e a missão da Igreja quer na vida diária quer no trânsito para a eternidade.

Todavia, não posso passar ao lado do tema enunciado nas primeiras linhas deste exercício de reflexão Mensagem do Santo Padre Francisco para a Quaresma de 2014, cujo lema é Fez-Se pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza (cf 2 Cor 8, 9).

O Papa, começando por citar aquelas palavras da segunda carta de Paulo aos Coríntios, questiona os cristãos sobre o que lhes diz hoje aquele enunciado do apóstolo, ou seja, “o convite à pobreza, a uma vida pobre em sentido evangélico”. Evidentemente que Francisco não está a alinhar com a política do empobrecimento, mas também não esquece a capitalidade pecaminosa da avareza, que faz acumular tesouros sobre tesouros, à custa da exploração e da miséria de outrem. E é aí que bate martelo papal:

A finalidade de Jesus Se fazer pobre não foi a pobreza em si mesma, mas –  como diz São Paulo  – “para vos enriquecer com a sua pobreza.  Não se trata dum jogo de palavras, duma frase sensacional. Pelo contrário, é uma síntese da lógica de Deus: a lógica do amor, a lógica da Encarnação e da Cruz. Deus não fez cair do alto a salvação sobre nós, como a esmola de quem dá parte do próprio supérfluo com piedade filantrópica.

E Francisco, que bem conhece os pecados que bradam ao céu – opressão dos pobres, especialmente órfãos e viúvas, e o não pagamento do salário condigno a quem trabalha – ensina:

À imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocupar-nos delas e a trabalhar concretamente para as aliviar. A miséria não coincide com a pobreza; a miséria é a pobreza sem confiança, sem solidariedade, sem esperança.

E, a par da miséria moral (“que consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado”) e da miséria espiritual (“que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor”), o papa dos pobres foca a miséria material:

É a que habitualmente designamos por pobreza e atinge todos aqueles que vivem numa condição indigna da pessoa humana: privados dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade como o alimento, a água, as condições higiénicas, o trabalho, a possibilidade de progresso e de crescimento cultural.

E, consequentemente, é gizado o programa de vida cristã em sintonia com a espiritualidade quaresmal, para combater a tipificada tríplice miséria.

Para obviar à miséria material, é necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha:

a Igreja oferece o seu serviço, a sua diakonia, para ir ao encontro das necessidades e curar estas chagas que deturpam o rosto da humanidade. Nos pobres e nos últimos, vemos o rosto de Cristo; amando e ajudando os pobres, amamos e servimos Cristo. O nosso compromisso orienta-se também para fazer com que cessem no mundo as violações da dignidade humana, as discriminações e os abusos, que, em muitos casos, estão na origem da miséria. Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa das riquezas.

Contra a miséria moral, que pode tornar-se em “suicídio incipiente”, é necessário debelar as situações que a evidenciam e erradicar as suas causas e tornarmo-nos próximos das pessoas. Cita como situações: a vivência familiar na angústia, porque alguém se deixou subjugar pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia; e a perda do sentido da vida e de perspetivas de futuro, a perda da esperança. E o papa aponta causas: “quantas pessoas se vêem constrangidas a tal miséria por condições sociais injustas, por falta de trabalho que as priva da dignidade de poderem trazer o pão para casa, por falta de igualdade nos direitos à educação e à saúde”. E assegura que estas são causa da ruína económica.  

Como antídoto da miséria espiritual, “o cristão é chamado a levar a todo o ambiente o anúncio libertador de que existe o perdão do mal cometido, de que Deus é maior que o nosso pecado e nos ama gratuitamente e sempre, e de que estamos feitos para a comunhão e a vida eterna”.

E temos um programa quaresmal e de vida cristã, com a reformulação da trilogia tradicional – oração, jejum e esmola. A oração liga-nos necessariamente ao ser e ao operar de Cristo pobre para salvar o mundo com a riqueza da sua pobreza, e não por meios exclusivamente humanos; o jejum, que não consista na penúria da comida ou da bebida, leva-nos a ultrapassar todas as formas de egoísmo e de individualismo e satisfazer as necessidades de justiça no sentido pleno e diverso do termo, fazendo-o com inspiração na vida e doutrina de Cristo e dispondo-nos a avançar com a dádiva eventual em situação de emergência e enquanto não se refazem as estruturas sociais de justiça, radicando nestes últimos pontos o real sentido do cristão esmoler.

O Papa Francisco e a Vida Religiosa

03-02-2014 19:27

O Papa Francisco e a Vida Religiosa

Quando li na Agência Ecclesia de ontem, dia 2 de fevereiro, as palavras de Francisco ao Angelus sobre a vida religiosa, não atinei logo na profundidade das palavras. E o sentido epidérmico das mesmas transportou-me à formulação garrettiana, no Capítulo XL de Viagens na Minha Terra. Não resisto a transcrevê-la pelo que tem de atualidade, mesmo que somente no campo sociopolítico.

Diz o romântico romancista: “Entremos nesse convento das pobres Claras, tão aflitas e desconsoladas, agora que as ameaçam de dissolução como aos frades”. Não podemos esquecer que o ano corrente era o de 1834, o da extinção das ordens religiosas. Almeida Garrett, na sua evolução liberal ideológica e pragmática, que pretendia extensiva aos outros liberais, embora mantivesse um ódio visceral aos frades – talvez pelos desmandos, riqueza e poder de influência – apiedava-se das freiras, porque pobres e necessárias. Vejamos mais adiante: “aquelas instituições não metem medo aos verdadeiros liberais, e os outros lá têm o espólio dos frades para devorar”. Mas o escritor liberal e político sentencia, pela positiva:

Quando houver em Portugal um governo que saiba ser governo, há de regular e consolidar a existência das freiras, há de aproveitá-la para as piedosas instituições do ensino da mocidade, da cura dos enfermos, e do amparo dos inválidos”.

E anatematiza os barões e o governo:  “Os barões andam-lhe com o cheiro nos poucos bens que lhes restam às pobres freiras. Mal do governo que deixar comer mais aos barões!”.

Isto porque os tempos mudaram; e o doutrinador prático fundamenta o seu ponto de vista: “os liberais já conhecem que devem ser tolerantes, e que precisam de ser religiosos”.

Podem questionar-me: Mas afinal onde está a semelhança com o discurso de Francisco? É que eu li: “Pensemos um pouco: o que aconteceria se não houvesse irmãs, as irmãs nos hospitais, nas missões, nas escolas? Pensai numa Igreja sem irmãs? Não se pode, não se pode pensar”. E aí vi uma semelhança entre os dois discursos e pensei que hoje os políticos nem práticos conseguem ser. Se entenderem que lhes fazem sombra ou lhes pisam os calos, tentam silenciar da maneira mais eficaz ou mais rápida. Por isso, continuam as perseguições – por ideologia e por falta de pragmatismo!

Porque é que também o Papa faz uma referência especial às “irmãs”? Encontro duas ordens de razões: a primeira diz respeito à relevância e especificidade do papel do “feminino” em muitos dos setores onde se joga a sorte de uma vida humana mais condigna, porque mais fragilizada; a outra terá a ver com o facto de os religiosos em institutos de vida consagrada serem, numa imensa maioria (os políticos diriam “esmagadora maioria”), abrangidos pela teologia e espiritualidade da consagração presbiteral. Relativamente poucos serão os irmãos leigos, apesar de desempenharem um papel peculiar sob a orientação do seu instituto. E, embora alguns o façam por opção de vida, outros ficam-se pela verificação de algumas limitações.

Porém, não posso ficar-me na dimensão do discurso prático do pontífice. Ele diz coisas simples, mas fabulosas em consonância com a doutrina conciliar:

As pessoas consagradas são um sinal de Deus nos vários ambientes da vida. Os consagrados são fermento para o crescimento de uma sociedade mais justa e fraterna, são profecia de partilha com os pequenos e pobres. Toda a pessoa consagrada é um dom de Deus, um dom de Deus à Igreja, um dom de Deus ao seu povo.

Se a afirmação se parece a uma formulação meramente teórica, o Papa explicita o lado prático:

Há tanta necessidade dessas presenças que fortalecem e renovam o compromisso da difusão do Evangelho, da educação cristã, da caridade para com os necessitados e da oração contemplativa. O compromisso da formação humana e espiritual dos jovens, das famílias; o compromisso com a justiça e a paz na família humana.

Por outro lado, não será de olvidar a coexistência do dia da vida consagrada com o 38.º dia dedicado pela Conferência Episcopal Italiana à vida sob o tema "Gerar o futuro". Ora, se a promoção da geração da vida e seu amparo passa pelos casais, as formas de vida e do apoio à mesma (sobretudo na saúde, na segurança e na educação) são extensivas a muitos tipos de pessoas. Lembremos, a título de exemplo: os bombeiros e todos os que integram a proteção civil; as forças armadas e as forças de segurança; os médicos e todos os profissionais de saúde e das ciências da vida; os educadores e professores; os agricultores e os pastores. Quantos não dão a vida pelos outros, ou de forma repentina e cruenta ou em repartição em pedacinhos por vários territórios e tempos! E não esqueceremos, por certo, os religiosos e religiosas, que vivem de forma mais intensa, em união com Cristo pobre, casto e obediente, a radicalidade do Evangelho, que os pastores são chamados a exprimir no modo de liderança profética, santificadora e caritativa, e os leigos, com as mesmas dimensões, no empenho em eivar do espírito de Cristo os diversos mundos da economia, da política, da educação, do desporto, da cultura e do trabalho.

Se atentarmos no que nos ensina a Lumen Gentium, a Constituição Dogmática sobre a Igreja, sobretudo no seu n.º 44, talvez fiquemos mais esclarecidos:

O estado religioso, a que são chamados os sacerdotes e os leigos, “tornando os seus seguidores mais livres das preocupações terrenas, manifesta também mais claramente a todos os fiéis os bens celestes, já presentes neste mundo; é assim testemunha da vida nova que é eterna, adquirida com a redenção de Cristo, e preanuncia a ressurreição futura e a glória do reino celeste”. Esta é de nominada dimensão escatológica da vida religiosa.

Mas, prosseguindo:

“O mesmo estado imita mais de perto e perpetuamente representa na Igreja aquela forma de vida que o Filho de Deus assumiu ao entrar no mundo para cumprir a vontade do Pai, e por Ele foi proposta aos discípulos que O seguiam”. É a linha de maior configuração com Cristo numa linha de aliança mística e proximidade.

“Finalmente” – avança o documento – “o estado religioso patenteia de modo especial a elevação do reino de Deus sobre tudo o que é terreno e as suas relações transcendentes; e revela aos homens a grandeza do poder de Cristo Rei e a potência infinita com que o Espírito Santo maravilhosamente atua na Igreja”. É a relativização dos bens deste mundo frente ao absoluto dos valores espirituais.

Depois, o decreto conciliar Perfectae Caritatis, sobre a renovação da vida religiosa estabelece os princípios e as formas de renovação deste estado de vida.

Mais tarde, em 1971, Paulo VI, na sua exortação apostólica Evangelica Testificatio, salienta a índole de dom de Deus do celibato religioso, afirmando:

Trata-se, na verdade, de um dom precioso, que o Pai concede a alguns. Frágil e vulnerável, por causa da fraqueza humana, ele permanece exposto às contradições da simples razão e em parte incompreensível para aqueles a quem a luz do Verbo Encarnado não tenha revelado de que maneira "aquele que perdeu a sua vida", por Ele, "a encontrará". (cf n.º 15).

E relaciona este dom com o clamor dos pobres, questionando:

Mais premente do que nunca, vós ouvis elevar-se o "clamor dos pobres", da sua indigência pessoal e da sua miséria coletiva. Não é, porventura, para responder também ao seu apelo de criaturas privilegiadas de Deus, que Cristo veio, chegando inclusivamente a identificar-se com eles? Num mundo em pleno desenvolvimento, esta permanência de massas e indivíduos miseráveis constitui uma chamada insistente, para "uma conversão das mentalidades e dos comportamentos" particularmente para vós, que seguis "mais de perto" a Cristo na sua condição terrena de aniquilamento. (cf n.º 17).

 E, em 1996, a exortação apostólica Vita Consecrata, de João Paulo II, retomando a doutrina dos anteriores documentos e passando em análise os diversos tipos de institutos, inclusive os mistos, refere no seu n.º 109:

Os cristãos, imersos nas lides e preocupações deste mundo, mas chamados eles também à santidade, têm necessidade de encontrar em vós corações puros que, na fé, «veem» a Deus, pessoas dóceis à ação do Espírito Santo que caminham diligentes na fidelidade ao carisma da sua vocação e missão.

Quer isto dizer que a vida religiosa, em que se entra por um ato de consagração especial, radica no patamar da consagração batismal e crismal de todos os membros do Povo de Deus. Não é um escalão da hierarquia, pelo que não colide nem coincide com a consagração presbiteral e episcopal, embora possa com elas ser concomitante. E, se alguém afirmava não constituir uma necessidade primária da Igreja (mas uma sua bela floração, presente desde o início nas virgens e viúvas, a que davam especial atenção os diáconos), constitui um modo intenso e específico de viver o mais plenamente possível neste mundo a santidade de Cristo e da Igreja. E esta dimensão santificante espelha-se nos diversos modos de vida religiosa, seja no monaquismo eremita ou no monaquismo cenobita, seja numa vida de inteira ou de meia clausura, seja numa vida ativa, no mundo do trabalho ou no mundo missionário.

É sempre vida por vida!

Contra a consideração do “inútil”

02-02-2014 23:46

Contra a consideração do “inútil”

O objeto desta reflexão inscreve-se na temática da utilidade da gramática e surgiu da leitura de uma local da Agência Ecclesia em que se lê “O Papa, jesuíta, falou da vida consagrada como um ‘encontro com Cristo’, partindo da passagem dos Evangelhos que relata a apresentação de Jesus no Templo por São José e a Virgem Maria”. Sem deixar de aceitar por formação e convicção a autenticidade e o valor da asserção, a ficar para ulterior ocasião, vou deter-me na questão de distinguirmos gramaticalmente entre os segmentos “o papa, jesuíta, falou da vida consagrada…” e “o papa jesuíta falou da vida consagrada…”, ou “o papa dos jesuítas falou da vida consagrada…” e, ainda, “o papa, proveniente dos jesuítas, falou da vida consagrada…” ou “o papa, que proveio dos jesuítas, falou da vida consagrada…”.

Dêmos de barato que grafar “O” com maiúscula decorre da sua posição em início de frase e “Papa”, por, apesar de ser nome comum, ser um axiónimo, sendo facultativo o uso da maiúscula ou da minúscula, para nos focarmos no segmento “jesuíta” ou os outros do mesmo eixo paradigmático.

Tradicionalmente, a gramática classificava sintaticamente “jesuíta”, do primeiro segmento, como aposto ou continuado (para alguns somente apositivo) e, do segundo, como atributo ou acessório. No primeiro caso, em termos de classificação morfológica, “jesuíta” tanto poderia ser classificado como substantivo ou nome (antigamente, nome substantivo) quanto como adjetivo (antigamente, nome adjetivo). Já o segmento “dos jesuítas” exercia indubitavelmente as funções de complemento determinativo, enquanto o segmento “proveniente dos jesuítas” era classificado sintaticamente como aposto ou como atributo, conforme viesse ou não ensanduichado nas vírgulas, e o segmento “que proveio dos jesuítas” era (e ainda é) a oração subordinada relativa adjetiva (restritiva, se vier sem as vírgulas, e explicativa, se vier entre vírgulas – o que, na oralidade, se distingue pela ausência ou existência de pausas e pela entoação). Não me digam que estes exercícios de observação visual e auditiva, correspondentes ao exercício de escrita e pronúncia – tudo sancionado pela gramática (que passou pelos designativos da moda: funcionamento da língua e conhecimento explícito da língua) – não eram de inquestionável utilidade discursiva, quer no atinente à compreensão quer no concernente à produção de enunciado!

Mais tarde, as inferências da gramática generativa, plasmadas na mera sintagmática, quiseram estabelecer que aqueles segmentos acima referenciados constituíam, em qualquer dos casos, o modificador do nome (aqui, “papa”), que com ele e com o correspondente determinante anteposto (o) formariam o sintagma nominal (aqui, sintagma nominal um, por vir à esquerda do sintagma verbal “falou da vida consagrada” e, nestes termos, exercer a função de sujeito). À luz de uma gramática demasiado pegada à sintaxe (muito embora, sempre que se arrumassem os sintagmas nas respetivas fórmulas de reescrita da frase, nas árvores ou nas caixas, se evocassem impertinentemente as regras fonológicas, morfológicas e semânticas), todos aqueles segmentos acima referenciados (repito a formulação) se equivaliam, pois eram modificadores do nome. Sendo assim, tanto valia escrever/dizer “um homem bracarense”, “um homem de Braga” ou “um homem que veio de Braga” – o que todos acordamos não ser a mesma coisa, a não ser que reduzamos a gramática à sintaxe, o que a arredaria da maior parte das riquezas da realização linguística, cultural e literária.

Hoje, o Dicionário Terminológico, que todos, negando o óbvio, referem não constituir uma nova gramática – talvez para não arreliar os linguistas, tornados tão suscetíveis nas últimas décadas – distingue as coisas de outro modo: a frase é constituída por grupo nominal, grupo verbal, grupo adjetival, grupo adverbial e grupo preposicional. E estes grupos ora emparceiram justapostamente uns com os outros ora uns se subordinam a outros, assim como as funções sintáticas desempenhadas por cada um.

No caso vertente, “o papa, jesuíta” é um grupo nominal (o seu núcleo é um nome “papa”), que exerce a função de sujeito simples; “falou da vida consagrada como um ‘encontro com Cristo’” é o grupo verbal (o seu núcleo é uma forma verbal “falou”) que exerce a função de predicado; “da vida consagrada” é um grupo preposicional (o seu núcleo é uma preposição “de” contraída com o determinante artigo definido “a”) que exerce a função de complemento oblíquo, integrando, por conseguinte, o predicado verbal; “como um encontro com Cristo” é uma oração subordinada adverbial comparativa, com a elisão do verbo, introduzida pela respetiva conjunção subordinativa “como”, que exerce a função de modificador do grupo verbal, porque não é necessário para que a frase faça sentido, mas, já que dela faz parte, integra o predicado verbal. É claro que novos estudiosos dos meandros da língua podem considerar aquele “como” a ter um papel de preposição (como o fazem para consoante, conforme, etc.) e o segmento que ele introduz (sem constituir oração) desempenharia também a função de modificador do grupo verbal, pela razão aduzida. Está visto que os grupos que integram o predicado são grupos que estão como que encaixados no grupo verbal, como também um grupo preposicional como “de+a vida consagrada” abrange um grupo nominal (no caso, a vida consagrada). Quanto à possibilidade de assumir “como” tratando-se de preposição, apresento o exemplo da formulação popular de enunciado “eu não sou tão rico coma ti” (“como a” ti – locução prepositiva), em alternativa a “eu não sou tão rico como tu” (“como” tu és – oração subordinada comparativa adverbial introduzida pela conjunção subordinativa comparativa “como”).

Integrando o grupo nominal “o papa, jesuíta”, o termo “jesuíta” corporiza um grupo justaposto a “o papa”, que aqui tenho dificuldade (só os professores de Português é que têm dificuldades desta ordem; os outros não as sentem) em arrumar no compartimento do grupo adjetival, que o é de origem, derivado de “Jesus”, ou no do grupo nominal, uma vez que, como tantos adjetivos, sofre a nominalização, dantes designada por (ou como, veja-se a hipótese enunciada para “como” no parágrafo anterior) substantivação. O certo é que este grupo desempenha a função de modificador apositivo do nome (note-se o ensanduichamento por vírgulas!). Porém, em “o papa jesuíta” (sem a vírgula) teríamos um grupo adjetival formado somente pelo adjetivo, que teria a função de modificador restritivo do nome (não faz lá falta, mas acrescenta-lhe uma informação que não acrescenta a mais nenhum nome neste contexto).

Já, em “o papa dos jesuítas”, “dos jesuítas” configura um grupo preposicional (cuja base é a preposição “de”), encaixado no grupo nominal, que funciona como complemento do nome “papa”. O segmento “proveniente dos jesuítas” seria um grupo adjetival que funcionaria como modificador apositivo do nome “papa”; e “dos jesuítas”, um grupo preposicional (de+os jesuítas), que integra um grupo nominal e que funcionaria como complemento do adjetivo “proveniente”. Por seu turno, o segmento “que proveio dos jesuítas” é a oração relativa adjetiva explicativa, introduzida pelo pronome relativo “que”, cujo antecedente é o nome “papa” e funcionaria como modificador apositivo do nome “papa”, mas o segmento “dos jesuítas”, configurando um grupo preposicional (de+os jesuítas) que abrange um grupo nominal (aqui, é de certeza: houve a nominalização) e funciona como complemento oblíquo regido pela forma verbal “proveio”, ao passo que o sujeito simples seria “que” (grupo nominal constituído somente pelo pronome “que”, que representa o nome) referido a “o papa” e o predicado verbal seria “proveio dos jesuítas” (constituído pelo verbo e grupo preposicional).

Já agora uma informação, que poderá ser tida como inútil: quando falamos de morfologia, hoje não nos referimos às classes de palavras e suas subclasses. Morfologia tem a ver, agora, com o processo de formação das palavras e respetiva classificação (palavra simples, palavra base, palavra composta, palavra derivada, sigla, acrónimo, truncação, empréstimo, amálgama…), a sua constituição (radical, vogal temática, terminação, desinência) e a sua flexão (em género e número, grau – e voz, conjugação, modo tempo e pessoa) com a respetiva arrumação. A este respeito, podemos lembrar os nomes sobrecomuns, os nomes epicenos, os nomes comuns-de-dois e os nomes heterónimos.

Aqui deixo uma exposição pretexto para ilustrar como o ensino da gramática, ministrado como eu o fiz agora, pode constituir uma valente seca (de siccus, a um – seco, no latim), se a informação gramatical for dada sem doseamento e progressividade ou sem que se parta de texto ajustado à aprendizagem. Lembram-se os sexagenários de como era lecionada a epopeia camoniana? Poderia, em determinados casos, ficar-se com alergia irreversível a Os Lusíadas e à gramática. Porém, não é lícito concluir como que pela inutilidade da gramática ou pelo seu caráter de seca, como o entenderam alguns agentes de ensino da área do Português (que não professores de Português), que nunca aprenderam a ensinar cabalmente as práticas de receção da língua nem as da sua produção linguística, cultural e literária – também por falta de conhecimentos de Latim e de Grego.

Recordo-me de que, não há muito tempo, numa das primeiras aulas perante uma turma do 12.º ano, a quem iria lecionar pela primeira vez, um dos inocentes me questiona: “Ó professor, as suas aulas serão assim muito secantes? E eu atalhei, de imediato: “Não, não costumo vir para a aula com nenhuma faca nem com qualquer outro objeto cortante”! Perante a surpresa dos meus novos e queridos discípulos, expliquei que secante vem do verbo latino secare (cortar), donde temos em Português a palavra segar e outras de sua família como sega, segada, segadoiro, segador, segão, segadura, segão, segote, segotar e seca-vidas – tudo semanticamente relacionado com “corte” ou “cortar”. E veio a propósito mencionar as circunferências secantes (que se cortam mutuamente) e as paralelas atravessadas por uma secante (que as corta) e o segmento de reta ou o segmento circular e o setor circular (que envolvem cortes no círculo). Claro que não usei estes termos todos na mesma aula nem deixei de falar nas securas dos solos ou das peles secas, porque desidratadas, e nas homofonias com cego e cegar.

Enfim, depois de tudo isto, apresento esta mensagem gramatical a quem tiver a paciência de Job para a sua leitura, mas que aconselho sobretudo a quem tenha mais de cinquenta anos para fortalecer o cérebro e com o lembrete de que “o saber não ocupa lugar”, mesmo que levante questões irritantes ou suscite controvérsia. Cá estaremos para as curvas gramaticais, querendo Deus, o autor da gramática do Universo!

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Consulta de outro site

24-02-2014 20:04
Pode consultar também em: https://ideiaspoligraficas.blogspot.pt/

Crença na lei e na justiça

20-02-2014 01:08
Crença na lei e na justiça Creio na lei dita igual para todos, – mas que permite e sanciona as desigualdades, os privilégios e o enriquecimento por qualquer meio, tornando uns mais iguais que outros. Creio na lei que formalmente resulta da vontade das maiorias, – mas nem sempre respeita os direitos...

A gestão das escolas rumo à autonomia

19-02-2014 18:43
A gestão das escolas rumo à autonomia A Constituição de 1976 definiu os princípios orientadores da política educativa portuguesa, tornando obsoleta a lei de Veiga Simão e pertinente a existência de nova Lei de Bases do Sistema Educativo, remetendo para Assembleia da República a competência...

Francisco, “o guardião”?

18-02-2014 19:30
Francisco, “o guardião”? Recaiu-me na mesa da reflexão o livro de Rómulo Cândido de Souza Palavra, parábola (da editora “Santuário”, Brasil: 1990), que li e reli nos finais do passado milénio; e o refrescamento da leitura do capítulo 41 levou-me à releitura da homilia do papa Francisco na...

Escola do sucesso ou escola do futuro?

17-02-2014 16:53
Escola do sucesso ou escola do futuro? A questão vem ao caso depois de ter lido, no caderno especial do Público de 16 de fevereiro, a entrevista de Marçal Grilo a Maria João Avilez. Não vou comentar toda a entrevista, com que até concordo na generalidade, mormente no que diz respeito à recolocação...

Sobre “o veredicto sem apelo de Bergoglio contra o padre pedófilo”

16-02-2014 15:57
Sobre “o veredicto sem apelo de Bergoglio contra o padre pedófilo” O texto referenciado em epígrafe reporta uma decisão condenatória de um padre italiano acusado de pedofilia, ou pelo menos abuso de menor ("efebofilia"), com fundamento que, após as devidas investigações, terá vindo a comprovar-se....

A ADSE e os seus encargos

15-02-2014 16:28
A ADSE e os seus encargos A ADSE – sigla da então Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado, designação inicial atribuída ao organismo em 27 de abril de 1963 – significa, a partir de 15 de outubro de 1980, Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas e...

A gestão democrática das escolas e a legislação conexa

15-02-2014 01:52
A gestão democrática das escolas e a legislação conexa Com a revolução abrilina, não obstante a arejada reforma democrática do ensino da pena de Veiga Simão (Lei n.º 5/73, de 25 de julho – lei de bases do sistema educativo), impõe-se a rutura com as estruturas do regime anterior, em consonância com...

A gestão democrática das escolas e a Constituição

13-02-2014 20:30
A gestão democrática das escolas e a Constituição Sempre que o Ministério da Educação (e Ciência) promove a produção de legislação sobre gestão de escolas ou similar, argumenta com o acréscimo de autonomia, ao passo que os críticos acusam o seu acrescido défice. Se é certo que possuí alguma...

Mal-entendidos aldeãos e não só

13-02-2014 13:32
Mal-entendidos aldeãos e não só Nunca será excessivo acautelar a sintonia entre emissor e recetor na dinâmica da relação comunicacional. Se emissor e recetor não possuem um conhecimento equivalente do código linguístico ou se entre eles se instala ruído tal que obste ao fluxo comunicativo em boas...
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